O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN E BOI NEON: PAISAGENS, MASCULINIDADES E NORMATIVIDADES DE GÊNERO

 

SECRETO EN LA MONTAÑA Y BOI NEON: PAISAJES, MASCULINIDADES Y NORMATIVIDADES DE GÉNERO

 

Breno César de Almeida da Silva 1

Rafael De Tilio 2

 

1 Psicólogo. Departamento de Psicologia. Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Brasil). Correo electrónico: brenocesarasilva@gmail.com

2 Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Brasil). Correo electrónico: rafaeldetilio.uftm@gmail.com

 

Resumo

O objetivo dessa pesquisa foi compreender os discursos sobre o gênero masculino e sobre a heteronormatividade em dois filmes específicos: O Segredo de Brokeback Mountain (EUA) e Boi Neon (Brasil). Ambos foram analisados a partir dos conceitos de performatividade, citacionalidade e subversão da heteronormatividade propostos por Judith Butler. Apesar de produzidos em cenários geográficos e se passarem em momentos históricos distintos eles apresentam paisagens de gênero (conjunto de elementos ambientais, sociais, históricos e ideológicos componentes da subjetividade dos indivíduos) similares acerca da constituição e exercício da masculinidade. De maneira geral, os cowboys de O Segredo de Brokeback Mountain são homens hipermasculinizados (viris, trabalhadores e agressivos) que mesmo mantendo relações sexuais não se consideram homossexuais por estarem casados com mulheres e terem filhos; e os sertanejos de Boi Neon também exercem papéis típicos de homens heterossexuais apesar de adotarem ações e representações nem sempre considerados heteronormativos para seus gêneros. Assim, ambos são tomados como tecnologias de gênero (instrumentos de identificação para os sujeitos) produzem tensões e questionamentos em relação à heteronormatividade compulsória e à masculinidade hegemônica, constituindo importante dispositivo produtor e legitimador de subjetividades de gênero.

Palavras-chave: identidade de Gênero, masculinidade, sexualidade, homossexualidade, cinema como assunto.

 

Abstract

The objective of this research was to understand the discourses about male gender and heteronormativity in two specific films: Brokeback Mountain (USA) and Boi Neon (Brazil). Both were analyzed from the concepts of performativity, citation and subversion of heteronormativity proposed by Judith Butler. Although produced in different geographic settings and historical moments they present similar gender landscapes (set of environmental, social, historical and ideological subjectivity elements) about the masculinity constitution. Brokeback Mountain cowboys are overmasculinized (virile, hard-working, and aggressive) who, even having sex do not consider themselves homosexual – because they are married and have children with women; likewise, Boi Neon sertanejos also plays heterosexual men typical roles despite adopting attitudes that are not considered correct for their genders. Thus, both films taken as gender technologies (tactics of identification for the subjects) produces tensions to the compulsory heteronormativity and hegemonic masculinity, constituting as an important producer and legitimating device of gender subjectivities.

Keywords: gender identity, masculinity, sexuality, homosexuality, motion picture as topic. 
 

Resumen

El objetivo de esta investigación fue comprender los discursos al respecto del género masculino y la heteronormatividad en dos películas específicas: Secreto en la montaña (EUA) y Boi Neon (Brasil). Las dos fueron analizadas a partir de conceptos de performatividad, citacionalidad y subversión de la heternormatividad propuestos por Judith Butler. A pesar de ser producidos en escenarios geográficos diferentes y ser presentadas en momentos históricos distintos ellas presentan paisajes de género (conjunto de elementos ambientales, sociales, históricos e ideológicos, componente de la subjetividad de los individuos) semejantes al respecto de la constitución y ejercicio de la masculinidad. De manera general, los cowboys del Secreto en la Montaña son hombres hipermasculinizados (viriles, trabajadores y agresivos) que aunque mantienen relaciones sexuales no se consideran homosexuales ya que están casados con mujeres y tienen hijos; y los campesinos presentes en Boi Neon también ejercen papeles típicos de hombres heterosexuales a pesar de tener actitudes y representaciones no siempre consideradas heteronormativas por sus géneros. Así, ambas películas tomadas como tecnologías de género (instrumentos de identificación para los sujetos) producen tensiones y cuestionamientos en relación a la heteronormatividad compulsoria y a la masculinidad hegemónica, constituyéndose un importante dispositivo productor y legitimador de subjetividades de género.

Palabras clave: identidad de género, masculinidad, sexualidad, homosexualidad, cine como asunto.

 
 

Gênero, tradicionalismo(s) e performatividade(s)

 

 

Para Löwy e Rouch (2003) conceituar gênero nunca foi uma tarefa fácil, sendo ele um termo em disputa nas Ciências Humanas e Sociais. Segundo as autoras, de maneira geral e a despeito de suas diferenças gênero é uma maneira de compreender a estrutura e o funcionamento das relações de poder de uma sociedade. De Tilio (2014) argumenta que na nossa contemporaneidade foi a partir de uma corrente denominada essencialismo biológico que gênero passou a ser prioritariamente utilizado como categoria de análise das relações de poder: por um lado os aspectos biológicos e anatômicos dos corpos (portanto, considerados naturais) determinam o sexo dos indivíduos, e por outro lado a cultura e a socialização definem os papéis esperados de homens e mulheres (portanto, passíveis de mudanças nas e dentre as sociedades), denominadas (papéis de) gênero.

Se para as concepções essencialistas biológicas homens e mulheres são biológica e anatomicamente diferentes, eles também seriam distintos psicológica, comportamental e socialmente (De Tilio, 2014), sendo que por motivos biológicos os homens dominariam as mulheres. Assim, o homem é considerado racional, ativo no espaço público, na produção da ciência e da cultura, provedor do espaço doméstico, sexualmente irresponsável e poderoso; e a mulher é considerada emotiva, voltada ao mundo privado da reprodução dos filhos, cuidadora das relações de afeto, sexualmente passiva, dependente, obediente e universalizada em sua opressão (Giffin, 2005).

Neste sentido, o essencialismo biológico de gênero pressupõe que tanto a definição quanto as relações entre e intragêneros são estabelecidas por meio de um rígido binarismo (macho/homem ou mulher/fêmea que devem ser heterossexuais, pois isso garante a reprodução biológica e social da espécie), e as exceções ou desvios deste sistema são consideradas corrupções do corpo e da moral ou doenças (De Tilio, 2014). Outro nome para essa perspectiva é heteronormatividade compulsória de gênero (Costa & Nardi, 2015; Preciado, 2017) que pressupõem e requer uma linearidade entre sexo (biologia), gênero (papéis) e orientação sexual (escolha dos parceiros, que deve ser heterossexual): homens devem procurar apenas por mulheres e vice-versa. Todavia, compreender o gênero como efeito do sexo decorre em sérios problemas: a heteronormatividade compulsória estabelece rígidos papéis a serem desempenhados pelos homens e mulheres (feminilidade e masculinidade hegemônicas), sendo excluídas as dissonâncias (Passamani, 2013; Preciado, 2017). Felizmente, essa perspectiva recebeu severas críticas.

Segundo Costa e Nardi (2015), um dos principais efeitos da heteronormatividade (segundo o criador desta expressão, Michael Warner) além da citada supremacia masculina é o estabelecimento da oposição entre heterossexualidade e homossexualidade, sendo a última considera uma transgressão ou uma anormalidade da primeira. Assim, para os autores, há uma desqualificação de sexualidades, identidades, comportamentos e comunidades não-heterossexuais ou heterodissidentes, valorizando negativamente esses grupos e seus membros. Disso, como é de se supor, decorrem práticas homofóbicas e transfóbicas.

Neste sentido, Preciado (2017) argumenta que este biologismo do sexo deve ser compreendido como uma relação de poder, mais precisamente como “(...) uma tecnologia de dominação heterossocial que reduz o corpo a zonas erógenas em função de uma distribuição assimétrica de poder entre os gêneros (feminino/masculino)” (p.25) e, por isso, a heterossexualidade (considerada como normalidade dos corpos e das relações) “(...) longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve reinscrever ou se reinstruir através de operações constantes de repetição e de recitação dos códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como naturais” (p.26).

Toniette (2006) e Sampaio e Garcia (2010) argumentam que a partir da década de 1960 os movimentos feministas e das minorias sexuais estadunidenses começaram a questionar a subordinação das mulheres, dos homossexuais e dos transgêneros – ou seja, se opuseram à heteronormatividade compulsória. Foi a partir disso que o essencialismo biológico passou a ser confrontado e a expressão gênero passou a ser empregada não para se referir aos papéis sociais e sexuais decorrentes do sexo (biologia), mas sim para enfatizar as relações de poder entre os sexos que são socialmente (e não biologicamente) organizadas. Na década de 1990 o papel de Judith Butler nesta mudança de compreensão foi fundamental.

Butler (2015), antes mesmo de Preciado, argumenta contrariamente ao essencialismo biológico ao propor sua (teoria da) performatividade: desde o nascimento os indivíduos executam performances de papéis de gênero a partir da repetição de atos que são socialmente constituídos; muitas vezes essa reiteração é inconsciente e ocorre em situações cotidianas como, por exemplo, o uso de roupas, acessórios, comportamentos, tom de voz e aparência física que são considerados (como se fossem) naturais ou próprios de um ou outro sexo/gênero. Portanto, segundo Borges (2014) e Hioka (2008) o fato de ser necessária a repetição incessante que deve passar pelo crivo da validação social de algo considerado natural (sexo) revela a desnaturalização do pretenso natural. É neste sentido que deve ser compreendida a contundente afirmativa de Preciado (2017) de que a “(...) a identidade sexual não é a expressão instintiva da verdade pré-discursiva da carne, e sim um efeito da reinscrição das práticas de gênero no corpo” (p.29). O questionamento da heteronormatividade compulsória trata, por fim, dos predicados culturais e sociais que organizam efeitos distintivos das relações entre e intragêneros que supostamente se assentam numa determinação anatômica que distingue os homens das mulheres e os heterossexuais dos homossexuais.

Salih (2015) argumenta que a partir da performatividade:

 

Butler se afasta da suposição comum de que sexo, gênero e sexualidade existem numa relação necessariamente mútua, de modo que se, por exemplo, alguém é biologicamente fêmea, espera-se que exiba traços femininos e (num mundo heteronormativo, isto é, num mundo no qual a heterossexualidade é considerada norma) tenha desejo por homens. Em vez disso, Butler declara que o gênero é não natural, assim não há uma relação necessária entre o corpo de alguém e seu gênero. Será, assim, possível, existir um corpo designado como fêmea que não exiba traços geralmente considerados femininos. Em outras palavras, é possível ser uma fêmea masculina ou um macho feminino. (p.67).

 

Hioka (2008) esclarece que para Butler a performatividade está relacionada com a citacionalidade: constante e repetitiva citação da heteronormatividade compulsória quando os indivíduos colocam os discursos (heteronormativos) em ação, aplicando e repetindo as normas (de gênero) às mais diversas situações. Por isso a performatividade (que pode ser elencada dentre as teorias queer) questiona a coerência entre sexo, gênero, corpo, desejo, orientação e práticas sexuais (Miskolci, 2009; Sampaio & Germano, 2014).

As contribuições de Butler são extremamente relevantes, pois se gênero é (segundo as perspectivas essencialistas tradicionais/clássicas) a compulsoriedade heterossexual e seu status de verdade, fortalece-se a dominação masculina sobre as mulheres e sobre homens não-heterossexuais e as mudanças tornam-se difíceis. Entretanto, se gênero for uma identidade social contextualmente constituída e necessária de constantes reafirmações e provações dissociadas do sexo (biológico, natural), ou seja, uma construção social performativa, materializa-se um espaço possível para o questionamento dos padrões de dominação e opressão entre e dentre homens e mulheres, visto que não haveria uma única verdade absoluta sobre o sexo, mas sim efeitos de poder naturalizados que podem e devem ser reconstruídos, possibilitando rupturas e deslocamentos no binarismo (De Tilio, 2014).

O principal interesse das teorias queer é compreender as diversas e possíveis formas de relação de poder entre e intragêneros e também modificar os discursos hegemônicos e autoritários. Enfim, as teorias queer ressaltam a variedade e diversidade de subjetivações e práticas não enquadradas nos gêneros considerados normais e tradicionalmente definidos (homem ou mulher heterossexuais – os que mantêm a pressuposta adequação entre sexo biológico, gênero e orientação/desejo sexual) (De Tilio, 2014).

 

 

Tecnologias de Gênero e Espaço/Paisagem

 

 

As relações entre e intragêneros são influenciadas por outros aspectos além da sexualidade, tais como raça, etnia, religião e idade entre outros – ao que se denomina interseccionalidades (Hirata, 2014; Kerner, 2012). Ademais, pode-se considerar que o contexto social e geográfico são elementos interseccionais significativos para as constituições de gênero.

Segundo Fioravante e Alfano (2014) os estudos de gênero possuem como escopo de interesse os produtos e normas culturais e suas variações ao longo dos espaços e lugares, aproximando-se dos estudos do imaginário (individual e coletivo), interessando-se pela “(...) simbolização das formas e das ações de indivíduos no espaço” (p.61). O espaço compreende o ambiente físico, as ações, as atitudes, as emoções etc., por fim, o imaginário dos sujeitos. Portanto, o espaço ou paisagem de constituição dos sujeitos é produto e produtor social e, assim, está relacionado àquilo que eles fazem em seus ambientes (Name, 2017).

De maneira mais específica as imagens e o imaginário não são meros reflexos daquilo que os sujeitos pensam, mas são instâncias propositivas que inspiram representações balizadoras das ações (Name, 2017). Em outras palavras: as imagens estabelecem relações dialéticas com o mundo e com os sujeitos. Dessa maneira, o interesse pela diversificada maquinaria de produção de imagens no espaço pelas paisagens sociais que criam os sujeitos é de suma importância para os estudos de gênero (Fioravante & Alfano, 2014) – neste sentido, os determinantes de gênero compõem e participam das paisagens sociais. E paisagem, no caso, deve ser compreendida como as tensões entre espaço físico e subjetivo dos atores sociais, e um dos instrumentos que circunscrevem as paisagens são as mass media.

Posto isso, deve-se destacar que as produções artísticas e midiáticas são igualmente produtoras de identidades, dentre as quais o gênero; assim, para De Lauretis (1994), as tecnologias de gênero são práticas e estruturas que, mediante determinados objetivos, incidem sobre os corpos e as experiências sensíveis visando promover a captura e o aprisionamento dos sujeitos em padrões de normalidade (de masculinidade e de feminilidade) considerados aceitáveis. Em suma, por tecnologias de gênero devem ser compreendido, primeiro, que sexo e gênero não são fatos biológicos e naturais, mas sim produtos de uma cultura e, portanto, resultados da maquinaria da ação humana que interpela os sujeitos; e, segundo, que são muitos os produtores destes produtos de gênero (tais como os discursos religiosos, legais, científicos, midiáticos, pedagógicos etc.) que no contemporâneo pretendem em maior volume reproduzir a heteronormatividade compulsória (De Lauretis, 1994, p.220). Assim, gênero (masculino ou feminino) é mais um efeito de práticas (tecnologias) do que resultado de uma causa biológica.

Assim, as mídias possuem um papel fundamental no contemporâneo atuando na mediação entre sujeitos e sociedade, exercendo controles através de seus discursos (Fernandes & Siqueira, 2010). Tais produções agem como agentes de identificações acerca do que é ou não desejável, esperado e aceitável pelos sujeitos (Kellner, 2001), inclusive no que diz respeito ao gênero. Com isso, as produções cinematográficas caracterizam-se como aparelho tecnológico produtor e legitimador de identidades sociais e de gênero (Pires, 2009).

Fernandes e Siqueira (2010) consideram que o cinema (através dos diversos estilos narrativos) pretende que a plateia se identifique com signos e ideais específicos de uma sociedade. Assim, os argumentos, roteiros e personagens selecionados pelos diretores e produtores dessas tecnologias orientam formas de ser e viver, ratificam determinadas identidades e desautorizam outras (Name, 2017). O cinema é atravessado por interesses, imagens e ideologias, não sendo imune às influencias econômicas, políticas e sociais de um espaço/tempo histórico específico (Fioravante & Alfano, 2014) e, por isso, pode tanto fortalecer quanto questionar a heteronormatividade compulsória (Paiva, 2007).

Dentre a produção cinematográfica contemporânea os filmes western (de faroeste ou sobre cowboys) geralmente apresentam protagonistas com características quase inalteráveis: homens viris, astutos, musculosos, fortes, independentes das mulheres e solitários (Lau, 2015; Tavares & Alves, 2008). Outras produções cinematográficas também podem ser citadas como construtoras de um ideal de homem viril e de uma masculinidade excessiva (hegemônica em nossa sociedade) como os filmes de ações, aventuras e guerras (Conrado, 2014).

Porém, segundo Paiva (2007), o cinema contemporâneo também produz (mas em menor número) filmes que rompem com a imagem idealizada de homem e de masculinidade hegemônica. As representações de personagens homens não-heterossexuais no cinema (que de maneira contumaz são marcadas pelo deboche, escracho e abjeção) passaram a ser mais frequentes nas últimas décadas (Míguez, 2014). Exemplo disso é a produção do diretor espanhol Pedro Almodóvar, cujos filmes propõem um tratamento não heteronormativo das identidades de gênero. Míguez (2014) arrisca dizer que o diretor foi um dos primeiros a desconstruir/problematizar as identidades de gênero e a incorporar em seus filmes personagens homossexuais, bissexuais, transgêneros e transexuais, prostitutas, travestis e sadomasoquistas, transgredindo as inteligibilidades heteronormativas entre e intragêneros. E no cinema contemporâneo há outras produções que pretendem o mesmo.

Diante do exposto, o objetivo dessa pesquisa foi compreender os discursos sobre o gênero masculino e sobre a heteronormatividade compulsória em dois filmes específicos: O Segredo de Brokeback Mountain (EUA) e Boi Neon (Brasil).

 

 

Percurso da pesquisa

 

 

Trata-se de um estudo documental amparado na abordagem qualitativa de pesquisa, pautada na (teoria da) performatividade de Judith Butler. A utilização de filmes em pesquisas qualitativas é uma das modalidades da pesquisa documental (Banks, 2009) e, ademais, registros (áudio) visuais podem ser compreendidos como imagens que, como artefatos culturais, geram e ao mesmo tempo expressam os sentimentos e as identificações (também de gênero) de uma sociedade (Weller & Bassalo, 2011). Reitera-se que filmes são tecnologias de produção de gênero (De Lauretis, 1994).

Foram utilizados nesta pesquisa dois filmes: o estadunidense O Segredo de Brokeback Mountain (Lee, 2006) e o brasileiro Boi Neon (Mascaro, 2016). Há de se destacar que estes não são filmes do estilo autoral, isto é, não são produções de diretores que se dedicam (quase que) exclusivamente à temática das relações de gênero, sendo que suas produções abordam temas, tipos e gêneros cinematográficos diversificados.

A rigor estes não são filmes do tipo western apesar de seus protagonistas estarem pautados nos modelos idealizados e heteronormativos de homem e de masculinidade típicos daquele estilo: O Segredo de Brokeback Mountain é sobre cowboys estadunidenses, ao passo que Boi Neon mistura elementos das culturas caipiras e sertanejas brasileiras. Mas ambos apesar do distanciamento geográfico e de não pertencerem a mesma tradição cinematográfica possuem evidentes similaridades simbólicas: a masculinidade hegemônica que estipula homens viris, astutos, musculosos, corajosos, com valores tradicionais relacionados à estrutura e composição familiar (nuclearidade, heterossexualidade) e ocupação do espaço público na zona rural (trabalhar para sustentar a família e dependentes) (Campos, 2012; Hioka, 2008; Lau, 2015; Tavares & Alves, 2008).

A escolha dos filmes se deu em função de alguns fatores: devido tanto à predileção dos pesquisadores quanto ao fato deles terem adquirido reconhecimento no circuito cinematográfico. O Segredo de Brokeback Mountain recebeu em 2006 diversas premiações: o Oscar de melhor direção, o BAFTA e o Globo de Ouro de melhor filme do ano e de melhor direção e o Leão de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Veneza; também foi sucesso de público, de arrecadação e de crítica especializada, além de ter suscitado diversos debates e discussões sobre relações de gênero, tendo sido proibido em alguns países e/ou recebendo classificação etária elevada por motivar discussões sobre homossexualidade masculina (Adoro Cinema, 2006; IMDB, 2006). Por sua vez, Boi Neon também recebeu inúmeras premiações no circuito brasileiro e internacional de cinema independente e críticas positivas de diversos jornais internacionais e, a despeito de não ter sido um sucesso de audiência, é considerado um sucesso do recente cinema brasileiro (Adoro Cinema, 2016; IMDB, 2016).

A escolha destes filmes fundamentou-se na hipótese de que essas produções de alguma maneira auxiliam a questionar os paradigmas tradicionais de gênero masculino adotados no cinema. Os dois filmes pretendem problematizar a imagem de homem e de masculinidade típicos e hegemônicos no que se refere aos aspectos de sexo, gênero e orientação sexual que são “[transmitidos] de geração para geração por um sistema ideológico característico de crenças e valores” (Hioka, 2008, p.1) tal como é o cinema.

A fim de ter acesso aos filmes foi feito o download dos mesmos através de servidores online e posteriormente eles foram assistidos várias vezes – O Segredo de Brokeback Mountain foi assistido na versão legendada para o português. Ao longo das reproduções, segundo recomenda Banks (2009), as cenas que problematizavam o objeto desta pesquisa foram anotadas no formato de fichas (anotação do tempo, descrição da cena e transcrição das falas) que, ao final, foram compiladas num diário de campo. Assim, buscou-se nos dois filmes cenas que problematizassem as representações de gênero masculino consideradas típicas/tradicionais ligadas à heteronormatividade compulsória. As cenas elegidas foram analisadas a partir da performatividade de Judith Butler.

 

 

Paisagens componentes da(s) masculinidade(s): performatividade e citacionalidade em O Segredo de Brokeback Mountain e subversões da heteronormatividade em Boi Neon

 

 

Os resultados serão apresentados em dois momentos: primeiro serão apresentadas breves sinopses dos filmes destacando seus enredos e tramas; depois serão trabalhados os conceitos de performatividade e citacionalidade em O Segredo de Brokeback Mountain e de subversão da heteronormatividade em Boi Neon, sendo que ambos pretendem problematizar a heteronormatividade compulsória da masculinidade hegemônica.

Convém relembrar que por paisagem nesta pesquisa compreende-se o conjunto de elementos ambientais, sociais, históricos e ideológicos componentes da subjetividade dos sujeitos (Fioravante & Alfano, 2014), dentre os quais os relacionados ao gênero masculino. Portanto, não se trata de delimitar com exatidão quais elementos compõem as paisagens de gênero nestes filmes, mas bem seu contrário, isto é, compreender como a paisagem de gênero circunscreve discursos heteronormativos sobre masculinidade mesmo em contextos (espaciais e temporais distintos) que pretendem subverter essa hegemonia.

O Segredo de Brokeback Mountain (Lee, 2006) conta a história de dois cowboys, Jack Twist e Ennis Del Mar, que se conhecem no verão de 1963 após serem contratados para cuidar das ovelhas de Joe Aguirre em Brokeback Mountain situada no estado estadunidense do Wyoming. Jack deseja ser cowboy e está trabalhando no local pelo segundo ano seguido, enquanto Ennis aceita o emprego apenas para ganhar dinheiro para poder se casar com Alma. Vivendo isolados por semanas eles se tornam cada vez mais amigos e iniciam um relacionamento sexual e amoroso. Ao término do verão cada um segue sua vida: Ennis retorna para casa e casa-se com Alma, com quem tem duas filhas, enquanto Jack muda-se para o Texas e casa-se com Lureen com quem tem um filho. Após quatro anos do relacionamento que tiveram na montanha Brokeback, Jack escreve uma carta para Ennis propondo que eles se reencontrem. No reencontro os dois se abraçam e se beijam – o que é presenciado por Alma; na ocasião Jack é apresentado à esposa de Ennis como se nada tivesse ocorrido. A partir de então os dois passam a se encontrar duas vezes por ano em supostas viagens de pescaria em Brokeback Mountain durante duas décadas. Ao final, Ennis divorcia de Alma e recebe a notícia que Jack faleceu após se afogar no próprio sangue quando atingido no maxilar pelo pneu do carro que estourou – supõem-se que Jack foi morto, na verdade, por terem descoberto sua homossexualidade.

Por sua vez Boi Neon (Mascaro, 2016) se passa na atualidade e retrata a história de Iremar, um vaqueiro de curral que viaja pelo Nordeste do Brasil ao lado de Galega e a Cacá – essa é a razão por considerar Iremar um sertanejo. Por onde passa Iremar recolhe revistas, panos e restos de manequins já que seu grande sonho é deixar a vida rural para iniciar uma carreira como estilista no Pólo de Confecções do Agreste. Durante o filme Iremar conhece Geise, uma revendedora de cosméticos que durante a noite trabalha como vigia numa fábrica de tecidos. Iremar interessa-se por um perfume que Geise o apresenta e esta o presenteia com o mesmo, deixando o perfume com Cacá para que o entregue a ele. Nisso, Iremar vai até a fábrica que Geise trabalha a noite para agradecê-la e os dois mantêm relações sexuais. Ao final, o filme não explicita se Iremar atinge seu sonho de ser estilista.

Convém notar que Boi Neon além de pretender subverter a ordem regulatória que conecta sexo/gênero/orientação sexual (e, igualmente, trabalho) a partir da heteronormatividade compulsória, ele questiona o estereótipo do homem rural – o cowboy estadunidense e/ou o caipira ou sertanejo brasileiros. O cowboy estadunidense historicamente se confunde com a identidade cultural dos EUA, haja vista que o expansionismo passou a ser um dos temas mais prementes dos estudos culturais dos EUA. Vários autores argumentam que não somente a fronteira, mas a figura do cowboy foi responsável por grande parte da identificação masculina estadunidense (Hioka, 2008), sucedida pelo soldado. Louro (2013) comenta que os primeiros filmes de cowboy apareceram na virada do século XIX para o XX:

 

(...) essa figura [cowboy] que Hollywood imortalizaria como um herói vestindo chapéu de abas largas, um colete folgado, um lenço no pescoço e um revólver alojado num coldre de couro displicentemente afivelado à cintura, teve seu berço em um curto período da história dos Estados Unidos. Afinal as guerras contra os índios se concentraram entre 1860 e 1890. Lançando mão da liberdade criativa que a ficção permite e da condensação histórica em que se fundam os mitos, o cinema hollywoodiano criou um momento histórico impreciso e uma geografia imaginária, onde figuras míticas vivem em busca do equilíbrio em um universo violento. (p.173).

 

A autora se refere à figura do cowboy agressivo e viril que, não raro, mantinha relações homossexuais sem que o agente (o que penetra) se considerasse e fosse considerado afeminado – posição delegada àquele que era penetrado. Para Lau (2015) o homoerotismo entre cowboys apenas se tornava um problema pessoal e social quando a virilidade do homem (ser penetrado sexualmente; ou possuir trejeitos atribuídos às mulheres) ganhava relevância. Assim, ser penetrado equivalia a ser afeminado, mas penetrar outros homens permitia manter e provar a virilidade, masculinidade, hombridade e heterossexualidade (Hioka, 2008).

Apesar de O Segredo de Brokeback Mountain não ser um filme tipicamente western, encaixando-se mais no gênero drama e romance, os protagonistas trazem elementos daquele contexto e cenário por apresentarem estereótipo da masculinidade hegemônica: principalmente Ennis que é calado, tem poucas falas durante o filme e demonstra seus sentimentos por meio da agressividade. Além disso, os protagonistas após as temporadas de trabalho na Brokeback Mountain voltam para suas casas e se casam com mulheres, com quem tem filhos e residem em casas que eles mesmos sustentam com seus trabalhos na esfera pública – em consonância com o ideal de homem e cowboy. A subversão da masculinidade hegemônica que ocorre reside no fato deles serem cowboys másculos e hipermasculinizados (Ennis, por exemplo, utiliza da agressividade para expressar os sentimentos, o que é considerado uma característica típica do gênero masculino, remetendo à performatividade e à reiteração da norma heterossexual do que seria próprio dos homens), porém que mantém relações (homo) sexuais.

Butler (2015) desfaz a distinção sexo/gênero para argumentar que não há sexo (biologia) que não seja desde sempre gênero (cultura). Em outras palavras, isso significa que todos os corpos são generificados desde o início da vida, o que significa que não há um corpo natural do qual decorrem características psicológicas e sociais específicas. Disso, conclui-se que gênero não é algo que somos, mas sim algo que fazemos e, mais precisamente, que fazem conosco (pois as normas de gênero são social e historicamente constituídas) (Butler, 2014; Salih, 2015).

Por exemplo, durante todo o filme Ennis reafirma sua heterossexualidade por intermédio de atos performativos, como na cena (42min44s) em que ele entra num beco agonizando pela primeira separação de Jack e ao perceber que outro cowboy o está observando ele grita “O que você está olhando?” com uma expressão de raiva. Nas poucas vezes em que demonstra seus sentimentos Ennis o faz por meio da violência, um dos traços atribuídos à masculinidade.

Para não se tornar um ser abjeto na sociedade Ennis cita constantemente a norma heterossexual através de atos violentos, como o faz na cena (1h26min51s) em que Alma revela que sabia do seu envolvimento com Jack: (diz Alma que) “(...) vocês não iam lá pescar! Você e ele...”. Ennis a interrompe abrupta e violentamente, segurando-a pelo braço e ameaça: “Você não sabe nada sobre isso!”. Vendo sua masculinidade potencialmente degradada ele recorre à brutalidade e à violência que atuam de modo performativo para assegurar as insígnias da masculinidade e da heterossexualidade (Butler, 2014).

Outro exemplo de ato performativo em funcionamento é na cena (1h13min15s) em quem Ennis e Alma discutem num almoço, pois Alma diz que não almoçaria porque faria hora-extra no trabalho e Ennis fica irritado, pois ninguém comeria se a mulher não servisse a refeição. Nesta cena percebe-se uma reiteração da norma heterossexual que reforça o binarismo macho/fêmea e os papéis tradicionais de gênero: a mulher é posicionada como a cuidadora do lar, dos filhos e do marido, sendo o homem o provedor da casa. Claramente, a postura de Ennis está relacionada à esperada congruência entre sexo/gênero que a heterossexualidade compulsória impõe aos sujeitos (Hioka, 2008).

Os personagens homens em O Segredo de Brokeback Mountain se afirmam a todo o momento como masculinos: na cena em que Ennis e Jack conversam após a primeira vez que mantêm relações sexuais (31min40s) Ennis diz para Jack “Você sabe que não sou gay”, e Jack responde “Eu também não” – ou seja, o fato de dois homens manterem relações sexuais não os torna, necessariamente, homossexuais afeminados, o que exemplifica que sexo, gênero e orientação/desejo sexual não estão atrelados de maneiras fixas conforme estipula a heteronormatividade compulsória. Outra cena ocorre no almoço do Dia de Ação de Graças (1h23min24s) em que o sogro de Jack insiste que o neto assista a uma partida de futebol enquanto almoça, alegando que meninos (futuros homens) devem assistir futebol. Nessa cena, com a fala do sogro, percebe-se como funciona a citacionalidade proposta por Butler (2014; 2015) que pressupõe a constante e repetitiva citação da norma heterossexual pelos interlocutores (Hioka, 2008). Assim, dizer que meninos devem assistir futebol repete a norma vigente e diferencia os corpos (masculino/feminino) ao atribuir comportamentos, gostos e preferências que homens e mulheres devem ter e que são delimitados pelo contexto social.

Ennis se vê preso à vida que leva com Jack durante anos e o culpa por isso, como quando numa cena dos encontros na montanha ele diz: “Por que você não me deixa em paz então? E por sua causa, Jack, que eu sou assim. Não sou nada. Não sou lugar nenhum” (1h47min54s). Nesse momento Jack tenta confortá-lo com um abraço que Ennis refuta com agressividade, empurrando-o e gritando, ao mesmo tempo em que cede ao abraço de Jack e chora em seus braços –sentimentalismo exacerbado que não é estimulado pela heteronormatividade e masculinidade compulsória. Desse modo, o personagem reitera as normas que reiteram a heteronormatividade, o que o leva a atos performativos que pretendem afirmar a hegemonia heterossexual e a punição da homossexualidade (Costa & Nardi, 2015).

Tal ideia é reforçada na cena (1h9min47s) que mostra Ennis na montanha Brokeback com Jack contando sobre o que presenciou aos nove anos de idade: seu pai mostrou a ele e a seu irmão o corpo de um homem morto após ter sido arrastado pelo pênis até emasculá-lo, pois os agressores acreditavam que o homem era gay já que ele morava com outro homem. Ennis termina de contar a história concluindo que “Dois homens morando juntos? De jeito nenhum” – a despeito manterem relações sexuais sem serem homossexuais afeminados.

Antes de se debruçar sobre o filme (Boi Neon) cabe primeiramente discutir acerca do estereótipo de homem rural na paisagem (e imaginário social) brasileira. Para Santos e Carniello (2010) e Schnorr (2011) o homem rural no Brasil (caipira ou sertanejo, personagens respectivamente das regiões sudeste e nordeste) historicamente foi representado como preguiçoso, avesso ao trabalho e ignorante (o que não condiz com a realidade), sendo essas suas principais diferenças para com o cowboy estadunidense (considerado desde sempre proativo, desbravador e trabalhador). Mas segundo Campos (2012) e Ribeiro (2015) similarmente ao cowboy os caipiras e os sertanejos brasileiros possuem valores familiares tipicamente tradicionais e heteronormativos: domesticidade para as mulheres e ocupação do espaço público e sustento do lar pelos homens a partir de uma rígida divisão dos papéis sociais e sexuais – denominada dupla moral sexual.

O tipo de homem representado em Boi Neon é quase o mesmo do homem rural: expectativas de virilidade, valores familiares tradicionais e valor destinado ao trabalho por meio da domesticação da natureza. O filme se passa nos bastidores da vaquejada (atividade cultural típica na região nordeste brasileira na qual cavaleiros competem para ver quem consegue derrubar um boi puxando-o pelo rabo), numa disputa que envolve força, destreza e coragem (atributos esperados dos homens). O protagonista Iremar não se mostra uma pessoa ingênua e ignorante, mas sim conhecedor e apreciador de perfumes importados, além de ser escolarizado e saber confeccionar roupas femininas de alta costura – habilidades não esperadas de homens naquele contexto. Além de Iremar outras personagens do filme desconstroem a imagem de homem rural avesso à higiene e ao embelezamento, por exemplo, Galega depila-se em uma das cenas (1h14min59s) e Júnior usar uma chapinha[1][A1]  para alisar os cabelos (1h13min04s).

No âmbito da sexualidade, diferentemente de O Segredo de Brokeback Mountain, Boi Neon não apresenta homens que mantém relações homoeróticas, mas não obstante seu conteúdo permite questionamentos acerca da heterossexualidade e da masculinidade compulsória. Numa paisagem (vaquejada) na qual o machismo é o modo predominante de se relacionar, o filme enfatiza um protagonista homem com comportamentos e aparência tipicamente atribuídos aos homens (Iremar tem barba farta, olhar carrancudo, voz grossa e age de maneira agressiva), porém com sonhos de se tornar estilista e confeccionar sua própria marca de roupas.

Num sistema heteronormativo no qual a heterossexualidade é considerada a norma a ser seguida, supõe-se que sexo, gênero e orientação sexual (desejo) devem existir e se expressar numa relação necessariamente coadunada, de modo que alguém biologicamente macho, por exemplo, deve exibir traços psicológicos e subjetivos típicos dos homens e tenha comportamentos e desejos adequados a tais traços (Butler, 2014; Salih, 2015). No entanto, Iremar ao sonhar confeccionar sua própria marca de roupas subverte a heteronormatividade compulsória ao querer fazer algo considerado pertinente e restrito ao campo do feminino e proibido ao masculino. O filme problematiza os gêneros masculinos e femininos alicerçado em personagens que seguem e subvertem a (hetero) norma: a sinopse do filme faz o leitor crer que o protagonista é homossexual (posto que no imaginário heteronormativo brasileiro um homem que quer ser estilista é, quase que necessariamente, homossexual).

O filme não apresenta apenas o protagonista como personagem que executa atos subversivos da heteronormatividade compulsória: por exemplo, Galega é uma mulher que dirige o caminhão que carrega os bois para as vaquejadas, além de atuar como mecânica de veículos automotores – o que não é esperado das mulheres tradicionais. Iremar define Galega como bronca (pessoa de difícil trato ou carrancuda) na cena em que a revendedora de cosméticos, Geise, chega até o trabalho deles oferecendo seus produtos (1h8min52s). Assim, ao mesmo tempo que Galega tem ações e comportamentos considerados masculinos (dirigir o caminhão, ser mecânica e bronca) ela se adéqua às normas de gênero (da feminilidade) por ser quem faz e serve as refeições dos vaqueiros enquanto eles cuidam dos bois – isso é: apesar de tudo, ela é uma mulher que cuida dos homens. Em outras palavras e segundo a lógica heteronormativa são as mulheres as responsáveis pelos afazeres domésticos.

Outros personagens que subvertem a heteronormatividade compulsória são Cacá e Júnior. Cacá é uma menina de aproximadamente sete anos que gosta de cavalos e de cuidar dos bois junto a Iremar e outros vaqueiros. Pode-se perceber a subversão da norma e sua citacionalidade na cena (21min22s) na qual Cacá cai e machuca o braço enquanto ajuda Iremar a recolher os bois no curral. Nisso, sua mãe, Galega, ao ver a filha chorar e ser cuidada por Iremar fala asperamente “(...) isso é para você aprender! Não falei para você ficar na cozinha comigo?”. Nessa cena pode-se ver Cacá questionar a heteronorma, pois tem interesse em cuidar dos bois, uma atividade considerada obrigatória e própria dos homens. Todavia, a fala de Galega é igualmente uma citação (reforço, reiteração) da heteronorma ao referir a cozinha como um cenário feminino e que sua filha deveria ficar junto a ela, e não num meio masculino.

O personagem Júnior também reitera a heteronormatividade compulsória por ter características consideradas do sexo e do gênero masculino (barba, voz grossa e orientação heterossexual); porém, igualmente subverte a heteronormatividade compulsória ao se mostrar vaidoso com seu cabelo, diferentemente de Galega, que afirma gostar de seu cabelo como ele é: “(...) nasci assim, eu gosto do meu cabelo enrolado” (1h13min04s). A vaidade, atributo estético que despende cuidados, de acordo com a heteronormatividade é um valor e uma prática do universo feminino.

Como argumenta Salih (2015) ao citar Butler:

 

O gênero é a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de um quadro regulatório altamente rígido e que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a aparência de uma substância, a aparência de uma maneira natural de ser. (p. 89).

 

Boi Neon, portanto, pretende questionar os papéis de gêneros (principalmente os masculinos) na sociedade sertaneja. Os argumentos de Butler (2015) permitem considerar e compreender que o gênero é aprendido ao longo da vida, através de atos repetitivos que são internalizados como parte da identidade – mas que na origem nos são exteriores aos sujeitos. O mais notório do filme Boi Neon é que além de realizar um sutil questionamento dos papéis e das relações entre e intragêneros em nenhum momento os atos considerados subversivos (da heteronormatividade compulsória) são punidos ou considerados negativos, o que poderia em outras paisagens e contextos causar estranhamento e violências, como em O Segredo de Brokeback Mountain.

Por fim, o que ocorre nos filmes (em termos de problematizações da heteronormatividade e da masculinidade compulsória) pode ser compreendido à luz de alguns interessantes argumentos propostos por Sáez (2005) sobre as culturas couro (leather) e ursos (bear) da comunidade homossexual e que podem ser elucidativos para o entendimento do funcionamento das performatividades de gênero.

Tanto a hipermasculinização (cultura leather) e/ou a afirmação de valores masculinos considerados naturais ou tradicionais (cultura bear) que podem ser aplicados aos protagonistas (que mantém relações homossexuais) de O Segredo de Brokeback Mountain quanto, pelo seu avesso, o questionamento dos valores da masculinidade padrão dos protagonistas (heterossexuais) em Boi Neon ressaltam o mesmo e fundamental aspecto: o caráter performativo do gênero, seja o heteronormativo seja o heterodissidente. Para Sáez (2005) tanto o sexo como o gênero (no caso, o masculino) devem ser considerados como formas de incorporação que se fazem passar por naturais e óbvios, quando na realidade são resultados de relações de poder e, por isso mesmo, sujeitos a transformação e mudanças. Nas palavras de Sáez (2005) se “(...) trata de una naturaleza que nunca estuvo allí, es decir, se recrea performativamente una estado natural-animal que jamás han experimentado los seres humanos” (p.144).

Isso ajudaria a compreender por que em O Segredo de Brokeback Mountain os protagonistas reforçam papéis de gênero masculinos considerados tradicionais e aceitáveis (são cowboys homossexuais, porém heteronormativos) e os protagonistas de Boi Neon executam estes mesmos papéis sem fazerem muita questão de revelarem suas artificialidades e fragilidades. Em outras palavras, tal como na cultura leather ou bear as masculinidades dos cowboys e dos sertanejos nestes filmes pretendem um uso interessado da masculinidade para passarem desapercebidos (Sáez, 2005, p.146) para os outros homens e mulheres: quanto mais estão aproximados do padrão estabelecido (heteronormatividade e masculinidade compulsória) potencialmente menos estão sujeitos aos problemas decorrentes das suas não-perfeitas adequações a essa mesma masculinidade padrão.

Ademais, e no mesmo sentido do anteriormente exposto, Butler (2014) esclarece que tanto o excesso (a hipermasculinidade) quanto à contenção (que promove o questionamento) em relação à norma heteronormativa da masculinidade destacam o quanto tais normas e regulações de gênero são reflexos de constituições sociais, e não de naturalidades corpóreas, mas que sempre são referidas em relação a essas normas. Diante do exposto, ambos os filmes permitem questionar a naturalização biológica dos discursos hegemônicos sobre a masculinidade, além de situar as diferenças entre e dentre homens e mulheres não como produtos de naturalismos anatômicos e biológicos, mas sim como construções sociais, contextuais e temporais performativos (como paisagens em territórios específicos que, contudo, possuem similaridades simbólicas) passíveis de mudanças.

 

 

Considerações Finais (“Dois homens morando juntos? De jeito nenhum!”)

 

 

Essa pesquisa pretendeu compreender os discursos sobre gênero e sobre a heteronormatividade masculina em dois filmes que, apesar de produzidos em cenários geográficos, paisagens e (se passarem) em momentos históricos distintos (o estadunidense O Segredo de Brokeback Mountain e o brasileiro Boi Neon), apresentam paisagens similares acerca da masculinidade e seu questionamento. Por meio da performatividade e da citacionalidade os cowboys de O Segredo de Brokeback Mountain são homens hipermasculinizados (viris, trabalhadores, agressivos) que, a despeito de manterem relações homossexuais, não se consideram e não são considerados homossexuais. E os sertanejos de Boi Neon também são heterossexuais apesar de exercerem papéis nem sempre considerados heteronormativos. Ambos produzem tensões e questionamentos em relação à heteronormatividade compulsória e à masculinidade hegemônica sem, contudo, romper drasticamente com ela – “Dois homens morando juntos? De jeito nenhum” diz Ennis.

Estes filmes que são tecnologias de gênero são importantes por permitirem, desde que tomados em sua vertente crítica, desnaturalizar conceitos e pressuposições de sexo, gênero e orientação/desejo sexual alicerçados na heteronormatividade compulsória que historicamente constrange a masculinidade em um modelo unívoco e hegemônico, além de estabelecer a submissão da feminilidade e da homossexualidade masculina. Questionar o essencialismo biológico é fundamental numa sociedade como a brasileira que, infelizmente, possui elevadas taxas de feminicídio, homofobia e transfobia. O esforço em compreender os discursos sobre o gênero masculino e sobre a heteronormatividade compulsória presentes nestes filmes pretende propiciar discussões acerca da temática, nominalmente sobre o questionamento da heterossexualidade compulsória e suas repercussões nas relações entre e intragêneros, visando o rompimento de uma lógica que regula e normatiza os sujeitos em relações de poder assimétricas e autoritárias.

O cinema, como uma tecnologia de gênero e paisagem de constituição das subjetividades, tem um significativo papel na discussão sobre questões sociais, dentre elas o gênero. As produções cinematográficas por serem paisagens de gênero perpassadas por ideologias e interesses possuem relevância na construção de identidades e de subjetividades pessoais e coletivas, ratificando determinadas identidades sociais e desautorizando outras. Por isso, o cinema pode ser utilizado como estratégia para fomentar processos educacionais referentes (ao questionamento de) à generificação das relações sociais.

Assim, no geral, quando se considera que as representações de homens e mulheres e as dos (designados) desviantes da norma (sejam homens, sejam mulheres) (hetero) sexual vigente são produtos de naturalismos biológicos, as alterações na estrutura e nas relações sociais são dificultadas. Mas, ao contrário, quando se considera que essas representações e ações são construções sociais passíveis de mudanças, há possibilidade de questionamentos e do estabelecimento de maior equidade nas relações entre e intragêneros, rompendo com os binarismos, essencialismos e heteronormatividades compulsórias que perpetuam violências.

Deve-se considerar também que esta pesquisa é um recorte de uma realidade mais complexa e ampla, sendo, portanto, restrita à apenas duas produções cinematográficas. É necessário que outras investigações ampliem (em número e tipologias) as produções a serem analisadas. Concomitantemente, abordar outros produtos e tecnologias sociais e culturais de gênero (provenientes de outras mídias) seria de suma importância para a compreensão do modus operandi das tecnologias de gênero enquanto dispositivos produtores e legitimadores de subjetividades de gênero.

Desse modo, torna-se necessária a maior discussão acerca da heteronormatividade e da masculinidade compulsória e das suas repercussões nas e a partir das relações de gênero, além de esclarecer o papel das mídias como dispositivo que controla e normatiza a sexualidade a partir da heterossexualidade compulsória. Além disso, essa pesquisa se torna igualmente relevante na medida em que a existência de diferenças entre homens e mulheres é uma construção histórica e social e, portanto, não precisa necessariamente equivaler a uma hierarquização muitas vezes sustentada por desigualdades – mas que pode ser suportada pela ideia da igualdade e do bem-viver.

 

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[1] Em espanhol tal instrumento é conhecido como plancha de pelos.


 [A1]¿se mantiene el llamado a nota o se elimina?