O SEGREDO DE
BROKEBACK MOUNTAIN E BOI NEON: PAISAGENS, MASCULINIDADES E NORMATIVIDADES DE GÊNERO
SECRETO EN LA
MONTAÑA Y BOI NEON: PAISAJES,
MASCULINIDADES Y NORMATIVIDADES DE GÉNERO
Breno César de Almeida da Silva 1
Rafael De Tilio 2
1 Psicólogo. Departamento de Psicologia.
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Brasil). Correo electrónico: brenocesarasilva@gmail.com
2 Docente do Programa de Pós-graduação
em Psicologia. Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Brasil). Correo
electrónico: rafaeldetilio.uftm@gmail.com
Resumo
O objetivo dessa pesquisa foi
compreender os discursos sobre o gênero masculino e sobre a heteronormatividade
em dois filmes específicos: O Segredo de
Brokeback Mountain (EUA) e Boi Neon
(Brasil). Ambos foram analisados a partir dos conceitos de performatividade,
citacionalidade e subversão da heteronormatividade propostos por Judith Butler.
Apesar de produzidos em cenários geográficos e se passarem em momentos
históricos distintos eles apresentam paisagens de gênero (conjunto de elementos
ambientais, sociais, históricos e ideológicos componentes da subjetividade dos
indivíduos) similares acerca da constituição e exercício da masculinidade. De
maneira geral, os cowboys de O Segredo de
Brokeback Mountain são homens hipermasculinizados (viris, trabalhadores e
agressivos) que mesmo mantendo relações sexuais não se consideram homossexuais
por estarem casados com mulheres e terem filhos; e os sertanejos de Boi Neon também exercem papéis típicos
de homens heterossexuais apesar de adotarem ações e representações nem sempre
considerados heteronormativos para seus gêneros. Assim, ambos são tomados como
tecnologias de gênero (instrumentos de identificação para os sujeitos) produzem
tensões e questionamentos em relação à heteronormatividade compulsória e à
masculinidade hegemônica, constituindo importante dispositivo produtor e
legitimador de subjetividades de gênero.
Palavras-chave: identidade de Gênero, masculinidade,
sexualidade, homossexualidade, cinema como assunto.
Abstract
The objective
of this research was to understand the discourses about male gender and
heteronormativity in two specific films: Brokeback
Mountain (USA) and Boi Neon
(Brazil). Both were analyzed from the concepts of performativity, citation and
subversion of heteronormativity proposed by Judith Butler. Although produced in
different geographic settings and historical moments they present similar
gender landscapes (set of environmental, social, historical and ideological
subjectivity elements) about the masculinity constitution. Brokeback Mountain cowboys are overmasculinized (virile,
hard-working, and aggressive) who, even having sex do not consider themselves
homosexual – because they are married and have children with women; likewise, Boi Neon sertanejos also plays
heterosexual men typical roles despite adopting attitudes that are not
considered correct for their genders. Thus, both films taken as gender
technologies (tactics of identification for the subjects) produces tensions to
the compulsory heteronormativity and hegemonic masculinity, constituting as an
important producer and legitimating device of gender subjectivities.
Keywords: gender identity, masculinity, sexuality, homosexuality, motion picture as topic.
Resumen
El objetivo de esta investigación fue comprender los
discursos al respecto del género masculino y la heteronormatividad en dos
películas específicas: Secreto en la
montaña (EUA) y Boi Neon
(Brasil). Las dos fueron analizadas a partir de conceptos de performatividad, citacionalidad y subversión de la
heternormatividad propuestos por Judith Butler. A pesar de ser producidos en
escenarios geográficos diferentes y ser presentadas en momentos históricos
distintos ellas presentan paisajes de género (conjunto de elementos
ambientales, sociales, históricos e ideológicos, componente de la subjetividad
de los individuos) semejantes al respecto de la constitución y ejercicio de la
masculinidad. De manera general, los cowboys
del Secreto en la Montaña son hombres
hipermasculinizados (viriles, trabajadores y agresivos) que aunque mantienen
relaciones sexuales no se consideran homosexuales ya que están casados con
mujeres y tienen hijos; y los campesinos presentes en Boi Neon también ejercen papeles típicos de hombres heterosexuales
a pesar de tener actitudes y representaciones no siempre consideradas
heteronormativas por sus géneros. Así, ambas
películas tomadas como tecnologías de género (instrumentos de identificación
para los sujetos) producen tensiones y cuestionamientos en relación a la
heteronormatividad compulsoria y a la masculinidad hegemónica, constituyéndose
un importante dispositivo productor y legitimador de subjetividades de género.
Palabras clave: identidad de género, masculinidad, sexualidad,
homosexualidad, cine como asunto.
Gênero,
tradicionalismo(s) e performatividade(s)
Para
Löwy e Rouch (2003) conceituar gênero nunca foi uma tarefa fácil, sendo ele um
termo em disputa nas Ciências Humanas e Sociais. Segundo as autoras, de maneira
geral e a despeito de suas diferenças gênero é uma maneira de compreender a
estrutura e o funcionamento das relações de poder de uma sociedade. De Tilio
(2014) argumenta que na nossa contemporaneidade foi a partir de uma corrente
denominada essencialismo biológico que gênero passou a ser prioritariamente
utilizado como categoria de análise das relações de poder: por um lado os
aspectos biológicos e anatômicos dos corpos (portanto, considerados naturais)
determinam o sexo dos indivíduos, e por outro lado a cultura e a socialização
definem os papéis esperados de homens e mulheres (portanto, passíveis de
mudanças nas e dentre as sociedades), denominadas (papéis de) gênero.
Se para as concepções essencialistas
biológicas homens e mulheres são biológica e anatomicamente diferentes, eles
também seriam distintos psicológica, comportamental e socialmente (De Tilio,
2014), sendo que por motivos biológicos os homens dominariam as mulheres.
Assim, o homem é considerado racional, ativo no espaço público, na produção da
ciência e da cultura, provedor do espaço doméstico, sexualmente irresponsável e
poderoso; e a mulher é considerada emotiva, voltada ao mundo privado da
reprodução dos filhos, cuidadora das relações de afeto, sexualmente passiva,
dependente, obediente e universalizada em sua opressão (Giffin, 2005).
Neste
sentido, o essencialismo biológico de gênero pressupõe que tanto a definição
quanto as relações entre e intragêneros são estabelecidas por meio de um rígido
binarismo (macho/homem ou mulher/fêmea que devem ser heterossexuais, pois isso
garante a reprodução biológica e social da espécie), e as exceções ou desvios deste
sistema são consideradas corrupções do corpo e da moral ou doenças (De Tilio,
2014). Outro nome para essa perspectiva é heteronormatividade compulsória de
gênero (Costa & Nardi, 2015; Preciado, 2017) que pressupõem e requer uma
linearidade entre sexo (biologia), gênero (papéis) e orientação sexual (escolha
dos parceiros, que deve ser heterossexual): homens devem procurar apenas por
mulheres e vice-versa. Todavia, compreender o gênero como efeito do sexo
decorre em sérios problemas: a heteronormatividade compulsória estabelece
rígidos papéis a serem desempenhados pelos homens e mulheres (feminilidade e
masculinidade hegemônicas), sendo excluídas as dissonâncias (Passamani, 2013;
Preciado, 2017). Felizmente, essa perspectiva recebeu severas críticas.
Segundo
Costa e Nardi (2015), um dos principais efeitos da heteronormatividade (segundo
o criador desta expressão, Michael Warner) além da citada supremacia masculina
é o estabelecimento da oposição entre heterossexualidade e homossexualidade,
sendo a última considera uma transgressão ou uma anormalidade da primeira.
Assim, para os autores, há uma desqualificação de sexualidades, identidades,
comportamentos e comunidades não-heterossexuais ou heterodissidentes,
valorizando negativamente esses grupos e seus membros. Disso, como é de se
supor, decorrem práticas homofóbicas e transfóbicas.
Neste sentido,
Preciado (2017) argumenta que este biologismo do sexo deve ser compreendido
como uma relação de poder, mais precisamente como “(...) uma tecnologia de
dominação heterossocial que reduz o corpo a zonas erógenas em função de uma
distribuição assimétrica de poder entre os gêneros (feminino/masculino)” (p.25)
e, por isso, a heterossexualidade (considerada como normalidade dos corpos e
das relações) “(...) longe de surgir espontaneamente de cada corpo
recém-nascido, deve reinscrever ou se reinstruir através de operações
constantes de repetição e de recitação dos códigos (masculino e feminino)
socialmente investidos como naturais” (p.26).
Toniette
(2006) e Sampaio e Garcia (2010) argumentam que a partir da década de 1960 os
movimentos feministas e das minorias sexuais estadunidenses começaram a
questionar a subordinação das mulheres, dos homossexuais e dos transgêneros –
ou seja, se opuseram à heteronormatividade compulsória. Foi a partir disso que
o essencialismo biológico passou a ser confrontado e a expressão gênero passou
a ser empregada não para se referir aos papéis sociais e sexuais decorrentes do
sexo (biologia), mas sim para enfatizar as relações de poder entre os sexos que
são socialmente (e não biologicamente) organizadas. Na década de 1990 o papel
de Judith Butler nesta mudança de compreensão foi fundamental.
Butler
(2015), antes mesmo de Preciado, argumenta contrariamente ao essencialismo
biológico ao propor sua (teoria da) performatividade: desde o nascimento os
indivíduos executam performances de
papéis de gênero a partir da repetição de atos que são socialmente
constituídos; muitas vezes essa reiteração é inconsciente e ocorre em situações
cotidianas como, por exemplo, o uso de roupas, acessórios, comportamentos, tom
de voz e aparência física que são considerados (como se fossem) naturais ou
próprios de um ou outro sexo/gênero. Portanto, segundo Borges (2014) e Hioka
(2008) o fato de ser necessária a repetição incessante que deve passar pelo
crivo da validação social de algo considerado natural (sexo) revela a
desnaturalização do pretenso natural. É neste sentido que deve ser compreendida
a contundente afirmativa de Preciado (2017) de que a “(...) a identidade sexual
não é a expressão instintiva da verdade pré-discursiva da carne, e sim um
efeito da reinscrição das práticas de gênero no corpo” (p.29). O questionamento
da heteronormatividade compulsória trata, por fim, dos predicados culturais e
sociais que organizam efeitos distintivos das relações entre e intragêneros que
supostamente se assentam numa determinação anatômica que distingue os homens
das mulheres e os heterossexuais dos homossexuais.
Salih (2015) argumenta que a partir da performatividade:
Butler se
afasta da suposição comum de que sexo, gênero e sexualidade existem numa
relação necessariamente mútua, de modo que se, por exemplo, alguém é
biologicamente fêmea, espera-se que exiba traços femininos e (num mundo
heteronormativo, isto é, num mundo no qual a heterossexualidade é considerada
norma) tenha desejo por homens. Em vez disso, Butler declara que o gênero é não
natural, assim não há uma relação necessária entre o corpo de alguém e seu
gênero. Será, assim, possível, existir um corpo designado como fêmea que não exiba traços geralmente considerados
femininos. Em outras palavras, é possível ser uma fêmea masculina ou um macho
feminino. (p.67).
Hioka (2008) esclarece que para Butler
a performatividade está relacionada com a citacionalidade: constante e
repetitiva citação da heteronormatividade compulsória quando os indivíduos
colocam os discursos (heteronormativos) em ação, aplicando e repetindo as
normas (de gênero) às mais diversas situações. Por isso a performatividade (que
pode ser elencada dentre as teorias queer) questiona a coerência entre sexo,
gênero, corpo, desejo, orientação e práticas sexuais (Miskolci, 2009; Sampaio
& Germano, 2014).
As contribuições de Butler são
extremamente relevantes, pois se gênero é (segundo as perspectivas
essencialistas tradicionais/clássicas) a compulsoriedade heterossexual e seu
status de verdade, fortalece-se a dominação masculina sobre as mulheres e sobre
homens não-heterossexuais e as mudanças tornam-se difíceis. Entretanto, se
gênero for uma identidade social contextualmente constituída e necessária de
constantes reafirmações e provações dissociadas do sexo (biológico, natural),
ou seja, uma construção social performativa, materializa-se um espaço possível
para o questionamento dos padrões de dominação e opressão entre e dentre homens
e mulheres, visto que não haveria uma única verdade absoluta sobre o sexo, mas
sim efeitos de poder naturalizados que podem e devem ser reconstruídos,
possibilitando rupturas e deslocamentos no binarismo (De Tilio, 2014).
O
principal interesse das teorias queer é
compreender as diversas e possíveis formas de relação de poder entre e
intragêneros e também modificar os discursos hegemônicos e autoritários. Enfim,
as teorias queer ressaltam a
variedade e diversidade de subjetivações e práticas não enquadradas nos gêneros
considerados normais e tradicionalmente definidos (homem ou mulher
heterossexuais – os que mantêm a pressuposta adequação entre sexo biológico,
gênero e orientação/desejo sexual) (De Tilio, 2014).
Tecnologias
de Gênero e Espaço/Paisagem
As relações entre e intragêneros são
influenciadas por outros aspectos além da sexualidade, tais como raça, etnia,
religião e idade entre outros – ao que se denomina interseccionalidades
(Hirata, 2014; Kerner, 2012). Ademais, pode-se considerar que o contexto social
e geográfico são elementos interseccionais significativos para as constituições
de gênero.
Segundo Fioravante e Alfano (2014) os
estudos de gênero possuem como escopo de interesse os produtos e normas
culturais e suas variações ao longo dos espaços e lugares, aproximando-se dos
estudos do imaginário (individual e coletivo), interessando-se pela “(...)
simbolização das formas e das ações de indivíduos no espaço” (p.61). O espaço
compreende o ambiente físico, as ações, as atitudes, as emoções etc., por fim,
o imaginário dos sujeitos. Portanto, o espaço ou paisagem de constituição dos
sujeitos é produto e produtor social e, assim, está relacionado àquilo que eles
fazem em seus ambientes (Name, 2017).
De maneira mais específica as imagens e
o imaginário não são meros reflexos daquilo que os sujeitos pensam, mas são
instâncias propositivas que inspiram representações balizadoras das ações
(Name, 2017). Em outras palavras: as imagens estabelecem relações dialéticas
com o mundo e com os sujeitos. Dessa maneira, o interesse pela diversificada
maquinaria de produção de imagens no espaço pelas paisagens sociais que criam
os sujeitos é de suma importância para os estudos de gênero (Fioravante &
Alfano, 2014) – neste sentido, os determinantes de gênero compõem e participam
das paisagens sociais. E paisagem, no caso, deve ser compreendida como as
tensões entre espaço físico e subjetivo dos atores sociais, e um dos
instrumentos que circunscrevem as paisagens são as mass media.
Posto
isso, deve-se destacar que as produções artísticas e midiáticas são igualmente
produtoras de identidades, dentre as quais o gênero; assim, para De Lauretis
(1994), as tecnologias de gênero são práticas e estruturas que, mediante determinados
objetivos, incidem sobre os corpos e as experiências sensíveis visando promover
a captura e o aprisionamento dos sujeitos em padrões de normalidade (de
masculinidade e de feminilidade) considerados aceitáveis. Em suma, por
tecnologias de gênero devem ser compreendido, primeiro, que sexo e gênero não
são fatos biológicos e naturais, mas sim produtos
de uma cultura e, portanto, resultados da maquinaria da ação humana que
interpela os sujeitos; e, segundo, que são muitos os produtores destes produtos de gênero (tais como os discursos
religiosos, legais, científicos, midiáticos, pedagógicos etc.) que no
contemporâneo pretendem em maior volume reproduzir a heteronormatividade
compulsória (De Lauretis, 1994, p.220). Assim, gênero (masculino ou feminino) é
mais um efeito de práticas (tecnologias) do que resultado de uma causa
biológica.
Assim, as
mídias possuem um papel fundamental no contemporâneo atuando na mediação entre
sujeitos e sociedade, exercendo controles através de seus discursos (Fernandes
& Siqueira, 2010). Tais produções agem como agentes de identificações
acerca do que é ou não desejável, esperado e aceitável pelos sujeitos (Kellner,
2001), inclusive no que diz respeito ao gênero. Com isso, as produções
cinematográficas caracterizam-se como aparelho tecnológico produtor e
legitimador de identidades sociais e de gênero (Pires, 2009).
Fernandes
e Siqueira (2010) consideram que o cinema (através dos diversos estilos
narrativos) pretende que a plateia se identifique com signos e ideais
específicos de uma sociedade. Assim, os argumentos, roteiros e personagens
selecionados pelos diretores e produtores dessas tecnologias orientam formas de
ser e viver, ratificam determinadas identidades e desautorizam outras (Name,
2017). O cinema é atravessado por interesses, imagens e ideologias, não sendo
imune às influencias econômicas, políticas e sociais de um espaço/tempo
histórico específico (Fioravante & Alfano, 2014) e, por isso, pode tanto
fortalecer quanto questionar a heteronormatividade compulsória (Paiva, 2007).
Dentre a
produção cinematográfica contemporânea os filmes western (de faroeste ou sobre
cowboys) geralmente apresentam protagonistas com características quase
inalteráveis: homens viris, astutos, musculosos, fortes, independentes das
mulheres e solitários (Lau, 2015; Tavares & Alves, 2008). Outras produções
cinematográficas também podem ser citadas como construtoras de um ideal de
homem viril e de uma masculinidade excessiva (hegemônica em nossa sociedade)
como os filmes de ações, aventuras e guerras (Conrado, 2014).
Porém,
segundo Paiva (2007), o cinema contemporâneo também produz (mas em menor
número) filmes que rompem com a imagem idealizada de homem e de masculinidade
hegemônica. As representações de personagens homens não-heterossexuais no
cinema (que de maneira contumaz são marcadas pelo deboche, escracho e abjeção)
passaram a ser mais frequentes nas últimas décadas (Míguez, 2014). Exemplo
disso é a produção do diretor espanhol Pedro Almodóvar, cujos filmes propõem um
tratamento não heteronormativo das identidades de gênero. Míguez (2014) arrisca
dizer que o diretor foi um dos primeiros a desconstruir/problematizar as
identidades de gênero e a incorporar em seus filmes personagens homossexuais,
bissexuais, transgêneros e transexuais, prostitutas, travestis e
sadomasoquistas, transgredindo as inteligibilidades heteronormativas entre e
intragêneros. E no cinema contemporâneo há outras produções que pretendem o
mesmo.
Diante do
exposto, o objetivo dessa pesquisa foi compreender os discursos sobre o gênero
masculino e sobre a heteronormatividade compulsória em dois filmes específicos:
O Segredo de Brokeback Mountain (EUA)
e Boi Neon (Brasil).
Percurso
da pesquisa
Trata-se
de um estudo documental amparado na abordagem qualitativa de pesquisa, pautada
na (teoria da) performatividade de Judith Butler. A utilização de filmes em
pesquisas qualitativas é uma das modalidades da pesquisa documental (Banks,
2009) e, ademais, registros (áudio) visuais podem ser compreendidos como
imagens que, como artefatos culturais, geram e ao mesmo tempo expressam os
sentimentos e as identificações (também de gênero) de uma sociedade (Weller
& Bassalo, 2011). Reitera-se que filmes são tecnologias de produção de
gênero (De Lauretis, 1994).
Foram utilizados nesta pesquisa dois
filmes: o estadunidense O Segredo de Brokeback
Mountain (Lee, 2006) e o brasileiro Boi
Neon (Mascaro, 2016). Há de se destacar que estes não são filmes do estilo
autoral, isto é, não são produções de diretores que se dedicam (quase que)
exclusivamente à temática das relações de gênero, sendo que suas produções
abordam temas, tipos e gêneros cinematográficos diversificados.
A rigor estes não são filmes do tipo
western apesar de seus protagonistas estarem pautados nos modelos idealizados e
heteronormativos de homem e de masculinidade típicos daquele estilo: O Segredo de Brokeback Mountain é
sobre cowboys estadunidenses, ao passo que Boi
Neon mistura elementos das culturas caipiras e sertanejas brasileiras. Mas
ambos apesar do distanciamento geográfico e de não pertencerem a mesma tradição
cinematográfica possuem evidentes similaridades simbólicas: a masculinidade
hegemônica que estipula homens viris, astutos, musculosos, corajosos, com
valores tradicionais relacionados à estrutura e composição familiar (nuclearidade,
heterossexualidade) e ocupação do espaço público na zona rural (trabalhar para
sustentar a família e dependentes) (Campos, 2012; Hioka, 2008; Lau, 2015;
Tavares & Alves, 2008).
A escolha dos filmes se deu em função
de alguns fatores: devido tanto à predileção dos pesquisadores quanto ao fato
deles terem adquirido reconhecimento no circuito cinematográfico. O Segredo de Brokeback Mountain recebeu
em 2006 diversas premiações: o Oscar de melhor direção, o BAFTA e o Globo de
Ouro de melhor filme do ano e de melhor direção e o Leão de Ouro no Festival
Internacional de Cinema de Veneza; também foi sucesso de público, de
arrecadação e de crítica especializada, além de ter suscitado diversos debates
e discussões sobre relações de gênero, tendo sido proibido em alguns países
e/ou recebendo classificação etária elevada por motivar discussões sobre
homossexualidade masculina (Adoro Cinema, 2006; IMDB, 2006). Por sua vez, Boi Neon também recebeu inúmeras
premiações no circuito brasileiro e internacional de cinema independente e
críticas positivas de diversos jornais internacionais e, a despeito de não ter
sido um sucesso de audiência, é considerado um sucesso do recente cinema
brasileiro (Adoro Cinema, 2016; IMDB, 2016).
A escolha destes filmes fundamentou-se
na hipótese de que essas produções de alguma maneira auxiliam a questionar os
paradigmas tradicionais de gênero masculino adotados no cinema. Os dois filmes pretendem problematizar
a imagem de homem e de masculinidade típicos e hegemônicos no que se refere aos
aspectos de sexo, gênero e orientação sexual que são “[transmitidos] de geração
para geração por um sistema ideológico característico de crenças e valores” (Hioka,
2008, p.1) tal como é o cinema.
A fim de ter acesso aos filmes foi feito o
download dos mesmos através de servidores online e posteriormente eles foram
assistidos várias vezes – O Segredo de Brokeback
Mountain foi assistido na versão legendada para o português. Ao longo das
reproduções, segundo recomenda Banks (2009), as cenas que problematizavam o
objeto desta pesquisa foram anotadas no formato de fichas (anotação do tempo,
descrição da cena e transcrição das falas) que, ao final, foram compiladas num
diário de campo. Assim, buscou-se nos dois
filmes cenas que problematizassem as representações de gênero masculino
consideradas típicas/tradicionais ligadas à heteronormatividade compulsória. As
cenas elegidas foram analisadas a partir da performatividade de Judith Butler.
Paisagens
componentes da(s) masculinidade(s): performatividade
e citacionalidade em O Segredo de Brokeback
Mountain e subversões da heteronormatividade em Boi Neon
Os
resultados serão apresentados em dois momentos: primeiro serão apresentadas
breves sinopses dos filmes destacando seus enredos e tramas; depois serão
trabalhados os conceitos de performatividade e citacionalidade em O Segredo de Brokeback Mountain e de
subversão da heteronormatividade em Boi
Neon, sendo que ambos pretendem problematizar a heteronormatividade
compulsória da masculinidade hegemônica.
Convém
relembrar que por paisagem nesta pesquisa compreende-se o conjunto de elementos
ambientais, sociais, históricos e ideológicos componentes da subjetividade dos
sujeitos (Fioravante & Alfano, 2014), dentre os quais os relacionados ao
gênero masculino. Portanto, não se trata de delimitar com exatidão quais
elementos compõem as paisagens de gênero nestes filmes, mas bem seu contrário,
isto é, compreender como a paisagem de gênero circunscreve discursos
heteronormativos sobre masculinidade mesmo em contextos (espaciais e temporais
distintos) que pretendem subverter essa hegemonia.
O Segredo de Brokeback Mountain (Lee, 2006) conta a história de dois
cowboys, Jack Twist e Ennis Del Mar, que se conhecem no verão de 1963 após
serem contratados para cuidar das ovelhas de Joe Aguirre em Brokeback Mountain
situada no estado estadunidense do Wyoming. Jack deseja ser cowboy e está
trabalhando no local pelo segundo ano seguido, enquanto Ennis aceita o emprego
apenas para ganhar dinheiro para poder se casar com Alma. Vivendo isolados por
semanas eles se tornam cada vez mais amigos e iniciam um relacionamento sexual
e amoroso. Ao término do verão cada um segue sua vida: Ennis retorna para casa
e casa-se com Alma, com quem tem duas filhas, enquanto Jack muda-se para o
Texas e casa-se com Lureen com quem tem um filho. Após quatro anos do
relacionamento que tiveram na montanha Brokeback, Jack escreve uma carta para
Ennis propondo que eles se reencontrem. No reencontro os dois se abraçam e se
beijam – o que é presenciado por Alma; na ocasião Jack é apresentado à esposa
de Ennis como se nada tivesse ocorrido. A partir de então os dois passam a se
encontrar duas vezes por ano em supostas viagens de pescaria em Brokeback
Mountain durante duas décadas. Ao final, Ennis divorcia de Alma e recebe a
notícia que Jack faleceu após se afogar no próprio sangue quando atingido no
maxilar pelo pneu do carro que estourou – supõem-se que Jack foi morto, na
verdade, por terem descoberto sua homossexualidade.
Por
sua vez Boi Neon (Mascaro, 2016) se
passa na atualidade e retrata a história de Iremar, um vaqueiro de curral que
viaja pelo Nordeste do Brasil ao lado de Galega e a Cacá – essa é a razão por
considerar Iremar um sertanejo. Por onde passa Iremar recolhe revistas, panos e
restos de manequins já que seu grande sonho é deixar a vida rural para iniciar
uma carreira como estilista no Pólo de Confecções do Agreste. Durante o filme
Iremar conhece Geise, uma revendedora de cosméticos que durante a noite
trabalha como vigia numa fábrica de tecidos. Iremar interessa-se por um perfume
que Geise o apresenta e esta o presenteia com o mesmo, deixando o perfume com
Cacá para que o entregue a ele. Nisso, Iremar vai até a fábrica que Geise
trabalha a noite para agradecê-la e os dois mantêm relações sexuais. Ao final,
o filme não explicita se Iremar atinge seu sonho de ser estilista.
Convém notar que Boi Neon além de pretender subverter a ordem regulatória que
conecta sexo/gênero/orientação sexual (e, igualmente, trabalho) a partir da
heteronormatividade compulsória, ele questiona o estereótipo do homem rural – o
cowboy estadunidense e/ou o caipira ou sertanejo brasileiros. O cowboy
estadunidense historicamente se confunde com a identidade cultural dos EUA,
haja vista que o expansionismo passou a ser um dos temas mais prementes dos
estudos culturais dos EUA. Vários autores argumentam que não somente a fronteira,
mas a figura do cowboy foi responsável por grande parte da identificação
masculina estadunidense (Hioka, 2008), sucedida pelo soldado. Louro (2013)
comenta que os primeiros filmes de cowboy apareceram na virada do século XIX
para o XX:
(...) essa figura
[cowboy] que Hollywood imortalizaria como um herói vestindo chapéu de abas
largas, um colete folgado, um lenço no pescoço e um revólver alojado num coldre
de couro displicentemente afivelado à cintura, teve seu berço em um curto
período da história dos Estados Unidos. Afinal as guerras contra os índios se
concentraram entre 1860 e 1890. Lançando mão da liberdade criativa que a ficção
permite e da condensação histórica em que se fundam os mitos, o cinema
hollywoodiano criou um momento histórico impreciso e uma geografia imaginária,
onde figuras míticas vivem em busca do equilíbrio em um universo violento.
(p.173).
A autora se refere à figura do cowboy
agressivo e viril que, não raro, mantinha relações homossexuais sem que o
agente (o que penetra) se considerasse e
fosse considerado afeminado – posição delegada àquele que era penetrado. Para
Lau (2015) o homoerotismo entre cowboys apenas se tornava um problema pessoal e
social quando a virilidade do homem (ser penetrado sexualmente; ou possuir
trejeitos atribuídos às mulheres) ganhava relevância. Assim, ser penetrado
equivalia a ser afeminado, mas penetrar outros homens permitia manter e provar
a virilidade, masculinidade, hombridade e heterossexualidade (Hioka, 2008).
Apesar de
O Segredo de Brokeback Mountain não
ser um filme tipicamente western, encaixando-se mais no gênero drama e romance,
os protagonistas trazem elementos daquele contexto e cenário por apresentarem
estereótipo da masculinidade hegemônica: principalmente Ennis que é calado, tem
poucas falas durante o filme e demonstra seus sentimentos por meio da
agressividade. Além disso, os protagonistas após as temporadas de trabalho na Brokeback
Mountain voltam para suas casas e se casam com mulheres, com quem tem filhos e
residem em casas que eles mesmos sustentam com seus trabalhos na esfera pública
– em consonância com o ideal de homem e cowboy. A subversão da masculinidade
hegemônica que ocorre reside no fato deles serem cowboys másculos e hipermasculinizados
(Ennis, por exemplo, utiliza da agressividade para expressar os sentimentos, o
que é considerado uma característica típica do gênero masculino, remetendo à performatividade
e à reiteração da norma heterossexual do que seria próprio dos homens), porém
que mantém relações (homo) sexuais.
Butler
(2015) desfaz a distinção sexo/gênero para argumentar que não há sexo
(biologia) que não seja desde sempre gênero (cultura). Em outras palavras, isso
significa que todos os corpos são generificados
desde o início da vida, o que significa que não há um corpo natural do qual
decorrem características psicológicas e sociais específicas. Disso, conclui-se
que gênero não é algo que somos, mas sim algo que fazemos e, mais precisamente,
que fazem conosco (pois as normas de gênero são social e historicamente
constituídas) (Butler, 2014; Salih, 2015).
Por
exemplo, durante todo o filme Ennis reafirma sua heterossexualidade por
intermédio de atos performativos, como na cena (42min44s) em que ele entra num
beco agonizando pela primeira separação de Jack e ao perceber que outro cowboy
o está observando ele grita “O que você está olhando?” com uma expressão de
raiva. Nas poucas vezes em que demonstra seus sentimentos Ennis o faz por meio
da violência, um dos traços atribuídos à masculinidade.
Para não
se tornar um ser abjeto na sociedade Ennis cita constantemente a norma
heterossexual através de atos violentos, como o faz na cena (1h26min51s) em que
Alma revela que sabia do seu envolvimento com Jack: (diz Alma que) “(...) vocês
não iam lá pescar! Você e ele...”. Ennis a interrompe abrupta e violentamente,
segurando-a pelo braço e ameaça: “Você não sabe nada sobre isso!”. Vendo sua
masculinidade potencialmente degradada ele recorre à brutalidade e à violência
que atuam de modo performativo para assegurar as insígnias da masculinidade e
da heterossexualidade (Butler, 2014).
Outro
exemplo de ato performativo em funcionamento é na cena (1h13min15s) em quem
Ennis e Alma discutem num almoço, pois Alma diz que não almoçaria porque faria
hora-extra no trabalho e Ennis fica irritado, pois ninguém comeria se a mulher
não servisse a refeição. Nesta cena percebe-se uma reiteração da norma
heterossexual que reforça o binarismo macho/fêmea e os papéis tradicionais de
gênero: a mulher é posicionada como a cuidadora do lar, dos filhos e do marido,
sendo o homem o provedor da casa. Claramente, a postura de Ennis está
relacionada à esperada congruência entre sexo/gênero que a heterossexualidade
compulsória impõe aos sujeitos (Hioka, 2008).
Os
personagens homens em O Segredo de Brokeback
Mountain se afirmam a todo o momento como masculinos: na cena em que Ennis
e Jack conversam após a primeira vez que mantêm relações sexuais (31min40s)
Ennis diz para Jack “Você sabe que não sou gay”, e Jack responde “Eu também
não” – ou seja, o fato de dois homens manterem relações sexuais não os torna,
necessariamente, homossexuais afeminados, o que exemplifica que sexo, gênero e
orientação/desejo sexual não estão atrelados de maneiras fixas conforme
estipula a heteronormatividade compulsória. Outra cena ocorre no almoço do Dia
de Ação de Graças (1h23min24s) em que o sogro de Jack insiste que o neto
assista a uma partida de futebol enquanto almoça, alegando que meninos (futuros
homens) devem assistir futebol. Nessa cena, com a fala do sogro, percebe-se
como funciona a citacionalidade proposta por Butler (2014; 2015) que pressupõe
a constante e repetitiva citação da norma heterossexual pelos interlocutores
(Hioka, 2008). Assim, dizer que meninos devem assistir futebol repete a norma
vigente e diferencia os corpos (masculino/feminino) ao atribuir comportamentos,
gostos e preferências que homens e mulheres devem ter e que são delimitados
pelo contexto social.
Ennis se
vê preso à vida que leva com Jack durante anos e o culpa por isso, como quando
numa cena dos encontros na montanha ele diz: “Por que você não me deixa em paz
então? E por sua causa, Jack, que eu sou assim. Não sou nada. Não sou lugar
nenhum” (1h47min54s). Nesse momento Jack tenta confortá-lo com um abraço que Ennis
refuta com agressividade, empurrando-o e gritando, ao mesmo tempo em que cede
ao abraço de Jack e chora em seus braços –sentimentalismo exacerbado que não é
estimulado pela heteronormatividade e masculinidade compulsória. Desse modo, o
personagem reitera as normas que reiteram a heteronormatividade, o que o leva a
atos performativos que pretendem afirmar a hegemonia heterossexual e a punição
da homossexualidade (Costa & Nardi, 2015).
Tal ideia
é reforçada na cena (1h9min47s) que mostra Ennis na montanha Brokeback com Jack
contando sobre o que presenciou aos nove anos de idade: seu pai mostrou a ele e
a seu irmão o corpo de um homem morto após ter sido arrastado pelo pênis até
emasculá-lo, pois os agressores acreditavam que o homem era gay já que ele
morava com outro homem. Ennis termina de contar a história concluindo que “Dois
homens morando juntos? De jeito nenhum” – a despeito manterem relações sexuais
sem serem homossexuais afeminados.
Antes de
se debruçar sobre o filme (Boi Neon)
cabe primeiramente discutir acerca do estereótipo de homem rural na paisagem (e
imaginário social) brasileira. Para Santos e Carniello (2010) e Schnorr (2011)
o homem rural no Brasil (caipira ou sertanejo, personagens respectivamente das
regiões sudeste e nordeste) historicamente foi representado como preguiçoso,
avesso ao trabalho e ignorante (o que não condiz com a realidade), sendo essas
suas principais diferenças para com o cowboy estadunidense (considerado desde
sempre proativo, desbravador e trabalhador). Mas segundo Campos (2012) e
Ribeiro (2015) similarmente ao cowboy os caipiras e os sertanejos brasileiros
possuem valores familiares tipicamente tradicionais e heteronormativos:
domesticidade para as mulheres e ocupação do espaço público e sustento do lar
pelos homens a partir de uma rígida divisão dos papéis sociais e sexuais –
denominada dupla moral sexual.
O tipo de
homem representado em Boi Neon é
quase o mesmo do homem rural: expectativas de virilidade, valores familiares
tradicionais e valor destinado ao trabalho por meio da domesticação da
natureza. O filme se passa nos bastidores da vaquejada (atividade cultural
típica na região nordeste brasileira na qual cavaleiros competem para ver quem
consegue derrubar um boi puxando-o pelo rabo), numa disputa que envolve força,
destreza e coragem (atributos esperados dos homens). O protagonista Iremar não
se mostra uma pessoa ingênua e ignorante, mas sim conhecedor e apreciador de
perfumes importados, além de ser escolarizado e saber confeccionar roupas
femininas de alta costura – habilidades não esperadas de homens naquele
contexto. Além de Iremar outras personagens do filme desconstroem a imagem de
homem rural avesso à higiene e ao embelezamento, por exemplo, Galega depila-se
em uma das cenas (1h14min59s) e Júnior usar uma chapinha[1][A1] para alisar os cabelos (1h13min04s).
No âmbito
da sexualidade, diferentemente de O Segredo
de Brokeback Mountain, Boi Neon
não apresenta homens que mantém relações homoeróticas, mas não obstante seu
conteúdo permite questionamentos acerca da heterossexualidade e da
masculinidade compulsória. Numa paisagem (vaquejada) na qual o machismo é o modo
predominante de se relacionar, o filme enfatiza um protagonista homem com
comportamentos e aparência tipicamente atribuídos aos homens (Iremar tem barba
farta, olhar carrancudo, voz grossa e age de maneira agressiva), porém com sonhos
de se tornar estilista e confeccionar sua própria marca de roupas.
Num sistema
heteronormativo no qual a heterossexualidade é considerada a norma a ser
seguida, supõe-se que sexo, gênero e orientação sexual (desejo) devem existir e
se expressar numa relação necessariamente coadunada, de modo que alguém
biologicamente macho, por exemplo, deve exibir traços psicológicos e subjetivos
típicos dos homens e tenha comportamentos e desejos adequados a tais traços (Butler,
2014; Salih, 2015). No entanto, Iremar ao sonhar confeccionar sua própria marca
de roupas subverte a heteronormatividade compulsória ao querer fazer algo
considerado pertinente e restrito ao campo do feminino e proibido ao masculino.
O filme problematiza os gêneros masculinos e femininos alicerçado em personagens
que seguem e subvertem a (hetero) norma: a sinopse do filme faz o leitor crer que
o protagonista é homossexual (posto que no imaginário heteronormativo brasileiro
um homem que quer ser estilista é, quase que necessariamente, homossexual).
O filme
não apresenta apenas o protagonista como personagem que executa atos
subversivos da heteronormatividade compulsória: por exemplo, Galega é uma
mulher que dirige o caminhão que carrega os bois para as vaquejadas, além de
atuar como mecânica de veículos automotores – o que não é esperado das mulheres
tradicionais. Iremar define Galega como bronca (pessoa de difícil trato ou
carrancuda) na cena em que a revendedora de cosméticos, Geise, chega até o
trabalho deles oferecendo seus produtos (1h8min52s). Assim, ao mesmo tempo que
Galega tem ações e comportamentos considerados masculinos (dirigir o caminhão,
ser mecânica e bronca) ela se adéqua às normas de gênero (da feminilidade) por ser
quem faz e serve as refeições dos vaqueiros enquanto eles cuidam dos bois –
isso é: apesar de tudo, ela é uma mulher que cuida dos homens. Em outras
palavras e segundo a lógica heteronormativa são as mulheres as responsáveis
pelos afazeres domésticos.
Outros personagens
que subvertem a heteronormatividade compulsória são Cacá e Júnior. Cacá é uma
menina de aproximadamente sete anos que gosta de cavalos e de cuidar dos bois
junto a Iremar e outros vaqueiros. Pode-se perceber a subversão da norma e sua citacionalidade
na cena (21min22s) na qual Cacá cai e machuca o braço enquanto ajuda Iremar a recolher
os bois no curral. Nisso, sua mãe, Galega, ao ver a filha chorar e ser cuidada
por Iremar fala asperamente “(...) isso é para você aprender! Não falei para
você ficar na cozinha comigo?”. Nessa cena pode-se ver Cacá questionar a heteronorma,
pois tem interesse em cuidar dos bois, uma atividade considerada obrigatória e
própria dos homens. Todavia, a fala de Galega é igualmente uma citação (reforço,
reiteração) da heteronorma ao referir a cozinha como um cenário feminino e que
sua filha deveria ficar junto a ela, e não num meio masculino.
O
personagem Júnior também reitera a heteronormatividade compulsória por ter características
consideradas do sexo e do gênero masculino (barba, voz grossa e orientação heterossexual);
porém, igualmente subverte a heteronormatividade compulsória ao se mostrar
vaidoso com seu cabelo, diferentemente de Galega, que afirma gostar de seu
cabelo como ele é: “(...) nasci assim, eu gosto do meu cabelo enrolado”
(1h13min04s). A vaidade, atributo estético que despende cuidados, de acordo com
a heteronormatividade é um valor e uma prática do universo feminino.
Como argumenta Salih (2015) ao citar
Butler:
O gênero
é a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de
um quadro regulatório altamente rígido e que se cristaliza ao longo do tempo
para produzir a aparência de uma substância, a aparência de uma maneira natural
de ser. (p. 89).
Boi Neon, portanto, pretende questionar os papéis
de gêneros (principalmente os masculinos) na sociedade sertaneja. Os argumentos
de Butler (2015) permitem considerar e compreender que o gênero é aprendido ao
longo da vida, através de atos repetitivos que são internalizados como parte da
identidade – mas que na origem nos são exteriores aos sujeitos. O mais notório do
filme Boi Neon é que além de realizar
um sutil questionamento dos papéis e das relações entre e intragêneros em
nenhum momento os atos considerados subversivos (da heteronormatividade
compulsória) são punidos ou considerados negativos, o que poderia em outras
paisagens e contextos causar estranhamento e violências, como em O Segredo de Brokeback Mountain.
Por fim, o que ocorre nos filmes (em termos de
problematizações da heteronormatividade e da masculinidade compulsória) pode
ser compreendido à luz de alguns interessantes argumentos propostos por Sáez
(2005) sobre as culturas couro (leather)
e ursos (bear) da comunidade
homossexual e que podem ser elucidativos para o entendimento do funcionamento
das performatividades de gênero.
Tanto a hipermasculinização (cultura leather) e/ou a afirmação de valores masculinos considerados
naturais ou tradicionais (cultura bear)
que podem ser aplicados aos protagonistas (que mantém relações homossexuais) de
O Segredo de Brokeback Mountain quanto,
pelo seu avesso, o questionamento dos valores da masculinidade padrão dos
protagonistas (heterossexuais) em Boi
Neon ressaltam o mesmo e fundamental aspecto: o caráter performativo do
gênero, seja o heteronormativo seja o heterodissidente. Para Sáez (2005) tanto
o sexo como o gênero (no caso, o masculino) devem ser considerados como formas
de incorporação que se fazem passar
por naturais e óbvios, quando na realidade são resultados de relações de poder
e, por isso mesmo, sujeitos a transformação e mudanças. Nas palavras de Sáez
(2005) se “(...) trata de una naturaleza que nunca estuvo allí, es decir, se
recrea performativamente una estado natural-animal que jamás han experimentado
los seres humanos” (p.144).
Isso ajudaria a compreender por que em O Segredo de Brokeback Mountain os protagonistas reforçam papéis de
gênero masculinos considerados tradicionais e aceitáveis (são cowboys
homossexuais, porém heteronormativos) e os protagonistas de Boi Neon executam estes mesmos papéis
sem fazerem muita questão de revelarem suas artificialidades e fragilidades. Em
outras palavras, tal como na cultura leather
ou bear as masculinidades dos cowboys
e dos sertanejos nestes filmes pretendem um uso interessado da masculinidade para
passarem desapercebidos (Sáez, 2005,
p.146) para os outros homens e mulheres: quanto mais estão aproximados do
padrão estabelecido (heteronormatividade e masculinidade compulsória) potencialmente
menos estão sujeitos aos problemas decorrentes das suas não-perfeitas
adequações a essa mesma masculinidade padrão.
Ademais, e no mesmo sentido do anteriormente exposto, Butler
(2014) esclarece que tanto o excesso (a hipermasculinidade) quanto à contenção
(que promove o questionamento) em relação à norma heteronormativa da
masculinidade destacam o quanto tais normas e regulações de gênero são reflexos
de constituições sociais, e não de naturalidades corpóreas, mas que sempre são
referidas em relação a essas normas. Diante
do exposto, ambos os filmes permitem questionar a naturalização biológica dos discursos
hegemônicos sobre a masculinidade, além de situar as diferenças entre e dentre homens
e mulheres não como produtos de naturalismos anatômicos e biológicos, mas sim
como construções sociais, contextuais e temporais performativos (como paisagens
em territórios específicos que, contudo, possuem similaridades simbólicas) passíveis
de mudanças.
Considerações
Finais (“Dois homens morando juntos? De
jeito nenhum!”)
Essa
pesquisa pretendeu compreender os discursos sobre gênero e sobre a
heteronormatividade masculina em dois filmes que, apesar de produzidos em
cenários geográficos, paisagens e (se passarem) em momentos históricos
distintos (o estadunidense O Segredo de Brokeback
Mountain e o brasileiro Boi Neon),
apresentam paisagens similares acerca da masculinidade e seu questionamento. Por
meio da performatividade e da citacionalidade os cowboys de O Segredo de Brokeback Mountain são
homens hipermasculinizados (viris, trabalhadores, agressivos) que, a despeito
de manterem relações homossexuais, não se consideram e não são considerados homossexuais.
E os sertanejos de Boi Neon também
são heterossexuais apesar de exercerem papéis nem sempre considerados heteronormativos.
Ambos produzem tensões e questionamentos em relação à heteronormatividade
compulsória e à masculinidade hegemônica sem, contudo, romper drasticamente com
ela – “Dois homens morando juntos? De jeito nenhum” diz Ennis.
Estes filmes que são tecnologias de
gênero são importantes por permitirem, desde que tomados em sua vertente
crítica, desnaturalizar conceitos e pressuposições de sexo, gênero e orientação/desejo
sexual alicerçados na heteronormatividade compulsória que historicamente constrange
a masculinidade em um modelo unívoco e hegemônico, além de estabelecer a
submissão da feminilidade e da homossexualidade masculina. Questionar o essencialismo
biológico é fundamental numa sociedade como a brasileira que, infelizmente,
possui elevadas taxas de feminicídio, homofobia e transfobia. O esforço em
compreender os discursos sobre o gênero masculino e sobre a heteronormatividade
compulsória presentes nestes filmes pretende propiciar discussões acerca da
temática, nominalmente sobre o questionamento da heterossexualidade compulsória
e suas repercussões nas relações entre e intragêneros, visando o rompimento de
uma lógica que regula e normatiza os sujeitos em relações de poder assimétricas
e autoritárias.
O cinema, como uma tecnologia de gênero
e paisagem de constituição das subjetividades, tem um significativo papel na
discussão sobre questões sociais, dentre elas o gênero. As produções
cinematográficas por serem paisagens de gênero perpassadas por ideologias e
interesses possuem relevância na construção de identidades e de subjetividades pessoais
e coletivas, ratificando determinadas identidades sociais e desautorizando
outras. Por isso, o cinema pode ser utilizado como estratégia para fomentar
processos educacionais referentes (ao questionamento de) à generificação das relações sociais.
Assim, no geral, quando se considera
que as representações de homens e mulheres e as dos (designados) desviantes da
norma (sejam homens, sejam mulheres) (hetero) sexual vigente são produtos de
naturalismos biológicos, as alterações na estrutura e nas relações sociais são
dificultadas. Mas, ao contrário, quando se considera que essas representações e
ações são construções sociais passíveis de mudanças, há possibilidade de questionamentos
e do estabelecimento de maior equidade nas relações entre e intragêneros,
rompendo com os binarismos, essencialismos e heteronormatividades compulsórias
que perpetuam violências.
Deve-se
considerar também que esta pesquisa é um recorte de uma realidade mais complexa
e ampla, sendo, portanto, restrita à apenas duas produções cinematográficas. É
necessário que outras investigações ampliem (em número e tipologias) as
produções a serem analisadas. Concomitantemente, abordar outros produtos e
tecnologias sociais e culturais de gênero (provenientes de outras mídias) seria
de suma importância para a compreensão do modus
operandi das tecnologias de gênero enquanto dispositivos produtores e
legitimadores de subjetividades de gênero.
Desse modo, torna-se necessária a maior
discussão acerca da heteronormatividade e da masculinidade compulsória e das
suas repercussões nas e a partir das relações de gênero, além de esclarecer o papel
das mídias como dispositivo que controla e normatiza a sexualidade a partir da
heterossexualidade compulsória. Além disso, essa pesquisa se torna igualmente
relevante na medida em que a existência de diferenças entre homens e mulheres é
uma construção histórica e social e, portanto, não precisa necessariamente
equivaler a uma hierarquização muitas vezes sustentada por desigualdades – mas que
pode ser suportada pela ideia da igualdade e do bem-viver.
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[A1]¿se mantiene el llamado a nota o se elimina?