RELAÇÕES DE GÊNERO, PODER
E VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES: UM ESTUDO SOBRE O SERTÃO BRASILEIRO[1]
RELACIONES
DE GÉNERO, PODER Y VIOLENCIA CONTRA LAS MUJERES: UN ESTUDIO SOBRE EL Sertão do Brasil
Kalline Flávia Silva de Lira[2]
Resumo
O presente artigo investiga as relações de gênero e de poder existentes na violência contra as mulheres no Sertão do Brasil. O artigo foi baseado nos aportes teóricos sobre gênero e relações de poder, além de documentos e pesquisas nacionais sobre a violência contra as mulheres. Sobre o lócus do Sertão, apontamos a singularidade através de dois fenômenos importantes: o coronelismo e o cangaço. Do ponto de vista metodológico, trata-se de um estudo de caso sobre a realidade do Sertão, com uma pesquisa de campo, a partir de uma abordagem qualitativa. Foram realizadas entrevistas com mulheres em situação de violência durante o ano de 2014. Concluímos que, apesar de compreender as agressões que sofrem como uma situação de violência, as mulheres minimizam a gravidade. Mesmo não se percebendo apenas no papel de esposa e de mãe, a maior participação da mulher sertaneja no espaço público ainda não reconfigurou as relações de gênero e de poder no âmbito privado, permanecendo a cultura que impõe a subordinação das mulheres diante dos homens.
Palavras-chave: violência, poder, gênero, sertão.
Resumen
El presente artículo
investiga las relaciones de género y de poder existentes en la violencia contra
las mujeres en el Sertão do Brasil. El artículo fue basado en los aportes
teóricos sobre género y relaciones de poder, además de documentos e
investigaciones nacionales sobre la violencia contra las mujeres. Sobre el locus del Sertão, apuntamos la
singularidad desde dos fenómenos importantes: el coronelismo y el cangaço. Desde el punto de vista metodológico,
se trata de un estudio de caso sobre la realidad del Sertão, con una
investigación de campo, a partir de una abordaje cualitativa. Se realizaron
entrevistas con mujeres en situación de violencia durante el año 2014. Concluimos que, aunque comprender las
agresiones que sufren como una situación de violencia, las mujeres minimizan la
gravedad. A pesar de no percibir sólo en el papel de esposa y de madre, la
mayor participación de la mujer sertaneja en el espacio público todavia no
reconfiguró las relaciones de género y de poder en el ámbito privado,
permaneciendo la cultura que impone la subordinación de las mujeres ante los
hombres.
Palabras claves:
violencia, poder, género, sertón.
Abstract
This article
investigates the gender and power relations existing in violence against women
in the Sertão do Brasil. The article was based on the theoretical contributions
on gender and power relations, as well as national documents and surveys on
violence against women. On the loch of the Sertão, we point out the singularity
through two important phenomens: coronelismo and cangaço. From the
methodological point of view, it is a case study about the reality of the
Sertão, with a field research, based on a qualitative approach. Interviews were
conducted with women in situations of violence during the year 2014. We conclude
that, despite understanding the aggressions they suffer as a situation of
violence, women minimize the severity. Even though women's participation in the
public space has not yet been reconfigured in terms of gender and power in the
private sphere, while the culture that imposes the subordination of women to
men.
Keywords: Violence, power, gender, sertão.
Recepción: 5 de abil de 2018/ Aceptación: 27 de agosto
de 2018
Introdução
O estudo aqui apresentado tem como
objetivo analisar a violência contra as mulheres através dos dados coletados a
partir das entrevistas com mulheres em situação de violência. A aproximação com
a temática ocorreu juntamente ao trabalho num Centro de Referência que atende
mulheres em situação de violência, localizado no Sertão brasileiro, por isso a
escolha deste lócus para a pesquisa. Foi através de um panorama de altos
índices de violência contra as mulheres que esse artigo foi refletido. Esse
estudo se justifica pela falta de pesquisas específicas que analisam o contexto
sociocultural do Sertão para a compreensão da violência contra as mulheres.
Apesar da
expressão “Sertão” aparecer nas representações do Brasil, segundo Amado (1995),
nos relatos dos viajantes europeus que visitaram e descreveram o país desde o
século XVI, foi a partir da virada do século XIX para o XX que ela assume uma
centralidade na própria explicação do país. A partir daí, verifica-se uma
tendência em naturalizar a expressão “Sertão”, remetendo-a a um espaço físico
delimitado e atualmente é usada para nomear, mais especificamente, as regiões
do interior dos Estados nordestinos. Assim, ao utilizarmos a palavra “Sertão”,
fazemos referência aos municípios localizados no interior dos Estados do
Nordeste brasileiro.
Geograficamente, o
sertão nordestino é caracterizado pela presença do clima semiárido, da
vegetação de caatinga, irregularidades nas distribuições de chuvas, solos secos
e temperaturas elevadas. Segundo o geógrafo Ab’Sáber (2003), os termos sertão
nordestino e semiárido brasileiro são utilizados para designar o espaço das
caatingas ou o Nordeste seco. No entanto, ressalta que historicamente o termo
sertão foi impregnado pela noção de espaço dominado pela natureza.
Por causa do tipo
de natureza, consequência do clima e da topografia do lugar, o sertão, com o
passar do tempo, foi sendo considerado um lugar atrasado, com muita seca, fome
e atravessado por uma violência excessiva. Obra clássica da literatura
brasileira, o livro de Cunha (1995) descreve a natureza física do sertão
através de um tom dramático, perpassado por uma melancolia que descreve um
lugar inóspito, de relevo desordenado, clima árido e vegetação ofensiva. O
sertão apresentado na obra é um lugar naturalmente isolado, de difícil acesso e
permanência, consagrando a imagem do Sertão como atraso.
O Brasil é um país
com alta incidência de pobreza e elevada desigualdade na distribuição de renda.
Não podemos negar que, nesses lugares considerados pertencentes ao sertão se
concentram algumas das cidades com maiores índices de desigualdades sociais do
país, além de baixos indicadores de desenvolvimento socioeconômico.
Levantamento realizado pelo Instituto de Planejamento Econômico e Social
(IPEA), em 1990, aponta que dos 32 milhões de indigentes no país, 55% estavam
no Nordeste. Mais de 10 milhões viviam na zona rural, e destes, 63% eram do
Nordeste (IPEA, 1993). Dados divulgados em 2003 continuam revelando que a
região Nordeste abriga o maior contingente de pobres, ou seja, 55,3% de sua
população viviam com até meio salário mínimo de renda domiciliar por pessoa.
Este percentual é entre duas ou três vezes superior ao das regiões Sudeste e
Sul. Seguindo esta linha, os dados mostram que a proporção de pobres no meio
rural é mais que o dobro da observada no meio urbano – 57,1% contra 27% (IPEA,
2003).
Assim, a mulher do
Sertão, principalmente residente na zona rural, vive com escassez de quase
tudo: água, alimento, serviços de saúde e de educação, emprego. Elas trabalham
em casa e na roça, principal meio de subsistência. Morando em vilas onde uma
casa pode estar há quilômetros de distância da outra, ficam expostas a quase
tudo, inclusive à violência do marido. A ideia de que mulher não deve trabalhar
fora, e sim cuidar da casa e da família ainda existe e é muito intensa também
no Sertão.
No entanto, não
podemos supor que é diferente para a mulher que reside na zona urbana da
cidade. Se por um lado as oportunidades de emprego e educação são maiores, a
“vigilância” também é. Os considerados “crimes de honra” ainda acontecem.
Afinal, o conceito de que “homem que é homem lava honra com sangue” persiste.
As mulheres da zona urbana são monitoradas pelo marido e principalmente pela
família dele, que não quer ter o “nome manchado”.
A violência tem
ocupado, cada vez mais, lugar de destaque no nosso cotidiano, ocasionando
debates e discussões em todo o mundo, no intuito de minimizar os seus efeitos. No
Brasil, o início dos debates para a criação de uma lei que coibisse a violência
contra as mulheres foi a necessidade de caracterizar a violência doméstica e
familiar como uma violação dos direitos humanos das mulheres e a importância de
garantir proteção e atendimento humanizados para as vítimas, já que ficou
notório que a mulher corria mais riscos de ser vítima dentro de sua própria
casa.
A
violência contra as mulheres no Brasil
A violência, fenômeno
universal e humano, é um problema multifacetado, e nenhuma causa isolada pode
explicá-la. Há uma dificuldade para definirmos a
violência, por ser um fenômeno que provoca forte carga emocional e por seu
conceito variar de sociedade para sociedade, sendo um fenômeno biopsicossocial.
Há várias definições para a violência, e segundo Pinheiro e Almeida (2003, p, 14)
ela “provém do latim violentia, que
significa ‘veemência’, ‘impetuosidade’, e deriva da raiz latina vis, ‘força’. Certamente, deve ter
havido alguma interação entre ‘violência’ e ‘violação’, a quebra de algum
costume ou dignidade. Isso é parte da complexidade do termo”.
Portanto, a
violência é uma força intencional, não necessariamente física, que provoca dano
contra alguém. A violência pode ser expressa através da opressão, do abuso da
força, do preconceito, agressão física ou verbal, entre outras formas. Segundo
D’Oliveira (1996), a violência passou a ser reconhecida como uma questão
pública a partir do século xix,
não porque tenha se tornado necessariamente mais intensa, mas por causa do
aparecimento de um discurso ético e moral, que ocasionou iniciativas para
conceituar e compreender o fenômeno, vinculado à ideia moderna de igualdade
social.
Entendendo a
violência como um tema múltiplo, de naturezas diversas, consideramos como
objeto de estudo desta pesquisa uma forma particular, que é a violência contra
as mulheres. O conceito de violência contra as mulheres é uma expressão criada
pelo movimento social feminista, e faz referência, de modo geral, a sofrimentos
e agressões que estão tradicional e profundamente enraizados na vida social,
percebidos como situações normais, quando dirigidos especificamente às mulheres
pelo simples fato de serem mulheres.
A violência contra
as mulheres não é algo novo, existe desde a antiguidade, e por muito tempo a
violência contra as mulheres foi socialmente aceita, acarretando a tolerância
atual ao fenômeno. Durante décadas esse tipo de violência não foi considerado
no Brasil. Dessa forma, quando o marido matava a esposa tendo como
justificativa uma suposta traição da mesma, ele não era punido. Assim, foi
sendo construída a forma de perceber a violência, e a maneira de coibi-la, com
base nas desigualdades de sexo, classe social e cor (Pitanguy, 2003). Por isso,
mesmo que a legislação atual condene a violência contra as mulheres, a
aceitação sociocultural está tão arraigada que as próprias mulheres em situação
de violência ainda têm dificuldade de se perceberem como vítimas, e nem sempre
reconhecem as agressões sofridas como violência.
Podemos perceber a
amplitude da questão através dos dados da pesquisa realizada pela Fundação
Perseu Abramo (Venturini, Recamán y Oliveira, 2004) que revelam que pelo menos
6,8 milhões de mulheres brasileiras vivas já foram espancadas ao menos uma vez,
e 31% dos casos tinham ocorrido entre os últimos doze meses em que a pesquisa
foi feita. O estudo chegou ao número alarmante de que a cada quinze segundos uma
mulher é agredida no Brasil. A pesquisa ainda mostra que a responsabilidade do
marido ou parceiro como principal agressor varia entre 53% e 70% dependendo do
tipo de violência praticada, sendo que os outros agressores mais comuns são
ex-marido, ex-companheiro e ex-namorado. Segundo o Mapa da Violência (Waiselfisz,
2015), embora o local mais comum de ocorrência ainda seja a via pública, a
residência da vítima é local relevante, totalizando 27,1% dos casos. Ainda de
acordo com o Mapa, em 67,2% dos casos, o agressor era parceiro, ex-parceiro ou
parente da mulher, o que demonstra a vulnerabilidade da mulher no âmbito de
suas relações domésticas, afetivas e familiares.
Assim, com números
tão preocupantes, tornava-se premente uma lei que coibisse a violência contra
as mulheres. Em 2006, finalmente foi aprovada uma lei que prevê o enfrentamento
da violência doméstica e familiar contra as mulheres – a Lei 11.340/2006. A
“Lei Maria da Penha”, como ficou conhecida, no seu artigo 5º, define violência
doméstica ou familiar contra a mulher como sendo toda ação ou omissão, baseada
no gênero, que cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano
moral e patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer
relação íntima de afeto, em que o agressor conviva ou tenha convivido com a
agredida (Diário Oficial da União, 2006). O advento desta lei foi importante,
principalmente por ampliar o conceito de violência doméstica contra a mulher,
enquadrando várias tipificações.
A violência contra
a mulher é tão ampla que atualmente, no Brasil, é difícil conhecer alguém que
não tenha contato com a problemática. Segundo pesquisa do Instituto Patrícia
Galvão (2013), 54% das pessoas entrevistadas conhecem uma mulher que já foi
agredida por um parceiro, e 56% conhecem um homem que já agrediu uma parceira.
Ainda segundo dados da pesquisa, sete em cada dez pessoas entrevistadas
acreditam que a mulher sofre mais violência dentro de casa do que em espaços
públicos. Ideia corroborada por dados já apresentados do Mapa da Violência (Waiselfisz,
2015). Os números são claros e mostram que, efetivamente, as mulheres sofrem
mais violência em casa e por seus parceiros íntimos.
Podemos perceber
através desses números como a violência praticada contra as mulheres está socialmente
construída e aceita, criando um espaço na sociedade para a dominação masculina
e a submissão feminina. Isto pode perpetuar a situação de desigualdade,
colocando o homem num lugar de detentor de poder sobre a mulher. Por isso,
recorremos a dois conceitos importantes – o de gênero e o de poder,
fundamentais para compreender as questões de violência e para analisar aquelas
praticadas contra as mulheres no Brasil, e mais especificamente no Sertão,
lócus de nossa pesquisa.
Problematizando
as relações de gênero no Sertão brasileiro
As noções do “ser mulher” mudaram ao
longo da história de acordo com as transformações sociais ocorridas. Se antes
as mulheres deveriam apenas servir ao marido e aos filhos nos seus afazeres
domésticos, ou ainda se limitando às tarefas no campo, a partir da Revolução
Industrial houve uma nova realidade econômica no mundo, o que acarretou a ida
das mulheres para trabalhar com as máquinas, saindo do espaço doméstico como
único lócus de suas atividades diárias.
Na tentativa de
dar conta da mudança que vem ocorrendo em relação às mulheres, buscou-se um
conceito, o de gênero, para tentar entender a configuração de sociedade, e,
consequentemente, a violência (ainda) existente nela. Os primeiros aportes
teóricos sobre gênero apresentavam os conceitos de sexo e gênero intimamente
atrelados, numa relação dicotômica entre a condição humana biológica versus a
social. Desse modo, pelo menos inicialmente, a concepção de gênero partiu da
ideia de uma diferença biológica existente entre homens e mulheres e, vinculada
a essa diversidade, os vários lugares sociais historicamente construídos e
propostos a cada um deles e a cada uma delas, que instituem os alicerces de
práticas discriminatórias e desiguais entre as pessoas.
Lauretis (1994)
coloca a problemática da diferença sexual no centro do debate das teorias
feministas. Seus argumentos falam da necessidade de separar gênero de diferença
sexual, e partindo de uma visão foucaultiana, passar a conceber gênero como
produto de várias tecnologias, como um dispositivo. Para a autora, os gêneros
são produzidos por uma tecnologia, uma maquinaria de produção, que criam as
categorias homem e mulher para todas as pessoas, através de discursos apoiados
nas instituições como a família, a escola, entre outras.
Dessa forma, somos
todos interpelados pelo gênero, considerando interpelação como um “processo
pelo qual uma representação social é aceita e absorvida por uma pessoa como uma
própria representação, e assim se torna real para ela, embora seja de fato
imaginária” (Lauretis, 1994, p. 220). Por isso algumas pessoas inseridas em
determinada cultura social absorvem os papéis de mulher como sendo estritamente
de esposa e de mãe, e os reproduzem como se fossem escolhas suas e não uma
representação da sociedade em que vivem.
Conforme Scott
(1995), em seu uso mais recente, o termo gênero nasce com as feministas
americanas, que tentavam dar ênfase ao caráter social das diferenças baseadas
no sexo. As feministas recusavam o determinismo biológico que ficava implícito
nos termos “sexo” e “diferença sexual”. Para a autora, o conceito de gênero é
uma categoria analítica que ajuda no entendimento da história, do percurso e
dos diversos significados atribuídos ao termo. Além disso, tem suas implicações
para a compreensão de estudos sobre a mulher. Scott aborda e discute três
posições teóricas evidenciadas pelas historiadoras feministas para realizar a
análise de gênero.
A primeira
proposição é das feministas que procuram explicações nas raízes do patriarcado,
além de discutir a desigualdade entre homens e mulheres; a segunda posição
teórica refere-se à tradição marxista, que sugere uma explicação material para
o gênero; e a terceira abordagem é a teoria psicanalítica, que trabalha com
teorias de relação de objeto ou têm como referências as teorias freudianas e
lacanianas (Scott, 1995).
Considerando as
três abordagens que buscam explicar o gênero, mas percebendo que cada uma tem
falhas, Scott (1995, p. 86) propõe uma definição que incorpora duas posições
entendendo como: “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma
primária de dar significado às relações de poder”. Dessa forma, trabalhar com o
conceito de gênero é ampliá-lo além das questões sobre diferenças físicas e
biológicas, sendo necessário afirmar sua dimensão social, histórica e política.
Gênero, portanto, revela-se um conceito fundamental para analisar a relação de
subordinação das mulheres e a mudança social e política, bem como as violências
praticadas contra elas.
Consideramos, para
fins deste estudo, que gênero diz respeito às relações de poder e à distinção
entre atributos culturais impostos a cada um dos sexos e suas peculiaridades
biológicas. O gênero é o sexo socialmente modelado, ou seja, as características
tidas como masculinas e femininas são ensinadas desde o berço e tomadas como
verdadeiras, pela sua repetição cultural, não havendo determinação biológica
dos comportamentos e atitudes, e sim um aprendizado social. Dessa forma, o Sertão
brasileiro, devido a sua singularidade sociocultural, tem uma forma particular
de significar o gênero mulher.
Durante muito
tempo, o “ser mulher” no Sertão esteve no imaginário social ligado ao cangaço, um
fenômeno social ocorrido no Nordeste do país entre o final do século xix até 1940, em que grupos de pessoas
armadas demonstravam a insatisfação pelas condições precárias em que a maior
parte da população nordestina se encontrava, dando ênfase a estereótipos de um
ambiente hostil e violento. A mulher era vista como “mulher de coragem”,
referindo-se às cangaceiras, trazendo arraigado esse estigma de “mulher macho”,
capaz de assumir qualquer tipo de trabalho por mais duro que fosse, onde a
criminalidade atribuída a elas não levava em consideração as circunstâncias que
as fizeram entrar para o cangaço. A mulher sertaneja estava associada a valores
morais rígidos e tradicionais, vistas como mulheres sérias, trabalhadoras,
centradas na vida familiar, e apegadas a terra e a acompanhar seus maridos.
Nesse ambiente de
caatinga, a construção do “ser mulher” não era algo fácil, e a vaidade e os
sentimentos como amor, acabavam dividindo espaço com a dor e o medo. Parece que
o senso comum cristalizou a ideia da masculinização da mulher como algo
corriqueiro do Sertão nordestino, colocando-as num lugar fixo e determinado.
Segundo Falci (2000), no Sertão, ao nascerem, as mulheres eram chamadas de “meninos
fêmeas”.
Albuquerque Jr.
(2003) afirma que a mulher sertaneja ainda é vista como uma mulher lutadora,
resistente à seca, honesta, cheia de filhos dos quais cuida com muito amor e
carinho, seja ela rica ou pobre. A mulher sertaneja além de trabalhar nos
afazeres domésticos, é aquela que também trabalha em pequenas indústrias e
auxilia nos serviços do marido, podendo substituí-lo, caso haja necessidade.
Embora isso não seja mais totalmente verdade, ficou no imaginário coletivo a
imagem da mulher do sertão como “mulher-macho”.
Essa identidade
feminina foi construída em relação ao homem sertanejo. Na ideia de estabelecer o
homem do Sertão como àquele que não tem medo, de pensá-lo como forte e resistente
ao clima árido, tornou o homem viril, macho e corajoso. Assim, a mulher também
foi sendo construída em relação a esta identidade masculina, e igualmente em
decorrência das condições de sua região, passou a ser masculinizada, ou seja, estabeleceu-se
que a mulher tinha que ser “macho” para sobreviver aos obstáculos, “era uma
exigência da natureza hostil e da sociedade marcada pela necessidade de coragem
e destemor constante” (Albuquerque Jr., 2001, p. 247).
Se por um lado
temos a masculinização da mulher sertaneja, ao mesmo tempo, nos é dado uma
mulher que vive ás voltas de seu “coronel”, levando-se em conta o estereótipo
do machão nordestino. Segundo Falci (2000), mesmo as mulheres mais ricas,
tinham a vida cerceada pelos homens. No Sertão brasileiro do século xix, as mulheres de classe social alta,
até as que tinham estudo, estavam limitadas ao espaço privado, do lar. As
mulheres não eram consideradas cidadãs políticas, e por isso o campo público, seja
econômico, político, social ou cultural, não era destinado às mulheres.
Assim, foi construído
um lugar para a mulher que é do trabalho duro, e da ajuda ao marido. Alguns
elementos explicam a masculinização da mulher do Sertão, como a seca e a
ausência dos maridos que migram com ela, forçando as mulheres a assumirem as
tarefas deles e também seu lugar na família. Aquelas denominadas “viúvas da
seca” tinham que aprender a viver no universo masculino para sobreviver à
ausência do marido. Essa rigidez das mulheres na época da seca e a necessidade
de estar masculinizada são elementos ainda presentes na literatura regionalista
(Albuquerque Jr., 2003). Os discursos preconceituosos acabaram naturalizando os
papéis de gênero.
Embora a imagem da
mulher sertaneja tenha sido construída principalmente embasada nas questões da
seca e da pobreza, no século xxi
algumas mudanças aconteceram. Sem dúvida o aumento do acesso à educação e à
saúde pública ajudaram as mulheres a ressignificarem seus papéis para além de
esposa e de mãe, passando a ocupar outros espaços, como o do mercado de
trabalho, alcançando níveis mais altos de escolarização e renda. A inserção
cada vez maior da mulher no mercado de trabalho, a influência dos movimentos
feministas pela igualdade de direitos, o avanço da ciência em relação aos
métodos contraceptivos, a melhoria educacional das mulheres, dentre outras,
trazem um conjunto de “novos valores”, ligados a uma situação mais igualitária
entre o homem e a mulher. Juntam-se a isto, mudanças demográficas, econômicas,
políticas e culturais, que têm consequências nas questões do poder exercido por
homens e mulheres na sociedade.
As
relações de poder no Sertão de Pernambuco
No senso comum, as representações dos
homens sertanejos estão ligadas ao coronel, ao jagunço, ao cangaceiro: coragem,
destemor, valentia, virilidade. Para Albuquerque Jr. (2003), alimentar esse
mito do homem sertanejo como “cabra-macho” é contribuir para alimentar um
modelo de masculinidade baseada numa relação entre homens e mulheres que vigora
desde o Brasil colônia, e por isso, é naturalizada, tida como eterna. Esse
modelo de homem termina por vitimar os próprios homens, já que os instiga a
situações de risco, colabora com a violência contra as mulheres, e termina por
exigir dos homens renúncias afetivas e emocionais, como paternidade e expressão
de sentimentos. Para o autor, a macheza nordestina torna os homens infelizes.
Atualmente, a
sociedade sertaneja é herdeira de uma sociedade machista, do coronelismo. A modernidade,
é claro, chegou, e o sertão está mais desenvolvido, com Universidades, por
exemplo, e as mulheres estudam e trabalham. No entanto, os pensamentos
continuam tendo como base a raiz “coronelista”. Janotti (1984), no entanto,
critica o estereótipo dos coronéis como pessoas rústicas, brutais e ignorantes,
considerando que todo estereótipo é restritivo e empobrecedor. A autora traduz
o coronelismo como uma política de compromissos, uma aliança do Estado com a
oligarquia agrícola. Para Janotti (1984), o coronel era um tipo social, que
tinha sua autoridade reconhecida pela comunidade em função de seu papel
“protetor”. Porém, também deixa explícito que o coronel podia representar o bem
ou o mal, a depender das circunstâncias e seus interesses.
Na época dos grandes
coronéis, datada no final do século xix
até a década de 1930, a mulher tinha que ser boa cozinheira, cuidar bem da casa
e dos filhos, além de satisfazer sexualmente o marido. Dento da política
falocêntrica, não tinham como deixar essa imagem de mulher, já que eram
treinadas para servirem ao marido e ao lar. Restava à mulher ser aquela
submissa ao homem, tendo que acatar suas decisões e servi-lo. Depois de casar,
a mulher se libertava do poder de seu pai, mas caía nas “garras” do poder do
marido, passando a obedecer a seu esposo. No coronelismo, podemos ver a mulher
com dois objetivos: o da satisfação do homem, centro da sociedade
coronelística, e o da reprodução.
Outro fenômeno
social importante nos sertões brasileiros foi o cangaço – fato complexo, que
divide a opinião dos/as estudiosos/as que já refletiram sobre o tema. De forma
geral, trata-se de um fenômeno regional, no qual indivíduos organizados em
grupos praticavam uma série de crimes, como roubos, assassinatos, violações,
entre outros. Para Queiroz (1986), o cangaço é delimitado no tempo (de fins do
século xix até 1940) e no espaço
(interior do sertão nordestino). Os termos “cangaço” e “cangaceiro” eram
empregados para definir homens que viviam fortemente armados na região das
caatingas áridas, no interior de sete estados brasileiros.
O cangaço é um
fenômeno controverso porque, apesar de espalhar o terror pelo interior do
Nordeste, os cangaceiros também eram admirados por sua gente e se constituíam
como “heróis ambíguos”. Para Freitas (2005), o fenômeno do cangaço foi
considerado uma alternativa em relação aos trabalhos rurais e aos casamentos
que selavam acordos entre as famílias e não consideravam os sentimentos dos/as
noivos/as, principalmente das mulheres. Ser cangaceiro/a parecia ser algo subversivo
a ordem social, patriarcal e clientelista existente, embora não possamos
desconsiderar que as maiores vítimas das violências praticadas pelos
cangaceiros eram as mulheres camponesas, que quando não entravam de forma
forçada para os bandos, eram estupradas e até mesmo mortas.
Em contrapartida,
quando as mulheres eram entregues aos cangaceiros, tornavam-se cangaceiras, o
que lhes davam uma identidade e autonomia. A entrada das mulheres, por volta de
1930, mudou completamente o movimento do cangaço. Para alguns, depois que o
cangaceiro se apaixonava, ficava mais fácil ser vencido; para outros, amar uma
mulher deixava simbolicamente o cangaceiro menos viril. Há uma dualidade de
visões no que refere ao fenômeno do cangaço, e não podemos dizer com certeza
que as mulheres vivenciavam outro tipo de relação de poder, mais libertário,
dentro do grupo (Queiroz, 1986). Ainda segundo a autora, embora a maioria das
mulheres que entraram no cangaço tenha origem pobre, com passado de violência,
algumas mulheres ricas aderiram ao movimento, por razões que não eram
econômicas ou sociais.
Importante frisar
que no Sertão, assim como no resto do Brasil, os “desviantes” são muitas vezes
respeitados e admirados. Assim, o contexto de violência trazido pelo cangaço,
trouxe graves consequências para o destino da mulher. Segundo Queiroz (1986), o
machismo tradicional do Nordeste teve como consequência a estigmatização da
mulher violada pelos cangaceiros ou pelos soldados, produzindo, inclusive, um
repúdio pelas vítimas. A violência (neste caso, o estupro de mulheres), era uma
prática tida como “natural” da cultura androcentrista, uma afirmação do
erotismo masculino.
Em resumo, o
cangaço é representado por um contexto transgressor, que não segue regras nem
leis, e por isso é visto como a representação da própria violência,
principalmente contra as mulheres. Já o coronelismo, na figura marcante do
“coronel”, representa a dominação do homem sobre as mulheres, suas esposas,
consideradas apenas objetos da sexualidade do marido e instrumento de
procriação. No sertão, o homem dominava sua casa e as fronteiras dos currais
eleitorais, e assim as mulheres tinham pouca oportunidade para reivindicar por
espaços dentro da sociedade construída para ela servir ao homem. E assim, como a violência normatiza a conduta
dos homens do sertão nordestino, tanto entre coronéis quanto
entre os cangaceiros,
os jagunços, os machões, o poder do mando, sem descartar o
uso
da força, é o que prevalece.
As
mulheres em situação de violência no Sertão brasileiro
No intuito de compreender com mais
profundidade a problemática da violência contra as mulheres no Sertão do Brasil,
realizamos entrevistas com mulheres em situação de violência doméstica atual ou
passada. Para análise dos dados qualitativos, utilizamos a técnica de análise
de conteúdo proposta por Bardin (2004), para identificar os conteúdos
subjacentes e latentes das entrevistas. Dentro da análise de conteúdo,
escolheu-se a análise categorial, que funciona pelas operações de
desmembramento do conteúdo em unidades, em categorias segundo reagrupamentos
analógicos. As categorias de análise escolhidas são relacionadas ao nosso
aporte teórico apresentado neste artigo.
O universo da pesquisa
envolveu cinco mulheres. As mulheres
participantes da pesquisa representam um universo diversificado: da zona urbana
e rural, com graus de escolaridade variados, diferentes condições financeiras,
e de todas as faixas etárias. Isso corrobora o fato de que a violência
doméstica contra a mulher não se restringe a determinada classe ou cor, mas já
está difundida, infelizmente, em nossa sociedade como um todo.
No que refere à
análise das entrevistas, na primeira categoria analítica, buscamos compreender
a visão das mulheres em situação de violência doméstica sobre a violência
sofrida. A entrevistada Esperança[3]
demonstrou entender que as agressões que sofreu eram violência, pois além de
violência física, relatou também violência psicológica e patrimonial. Apesar de
seu entendimento de que sofria violência doméstica, Esperança ainda permaneceu
casada por vários anos: “Sempre tem a questão de achar que tem que estar juntos
por causa dos filhos. É frustrante ver seus sonhos de família sendo destruído”. Isto corrobora a ideia de que a mulher
tem como principal papel (ou destino) de esposa e de mãe, e sente-se
desamparada se os perde. Evidente que isso não é algo inerente, e corrobora a
noção de gênero empregada neste estudo, em que o papel de cada um é aprendido social
e culturalmente.
A
entrevistada Superação mostrou claramente que as mulheres tendem a minimizar a
violência psicológica e moral: “[o marido] me chamou de rapariga, prostituta,
um monte de coisa. [...] Me agredia sempre verbalmente. [...] Eu fui muito
espancada. Mas fui espancada só ume vez!”. Ou seja, enquanto as agressões eram
verbais, Superação não tomou nenhuma atitude, rompendo a relação apenas na
violência física. O principal questionamento diante desse fato é: as agressões
verbais e/ou psicológicas doem/marcam menos que as físicas?
Para
a entrevistada Felicidade, os insultos são tão cruéis quanto às tapas: “[ele ofende
com] os palavrões que nordestino fala: satanás, desgraça, vai se f..., vai
tomar no...”. No entanto, diz que pelas agressões verbais não tem coragem de se
separar: “Eu teria [coragem] se ele aprontasse de novo [arrumar outra mulher]”.
Está claro, portanto, que o homem firma sua condição de autoridade no lar,
mesmo quando é infiel e agride a mulher. Afinal, o adultério é historicamente
permitido ao homem na cultura patriarcal.
A
entrevistada Socorro apresenta diversas contradições em seu discurso. Ao
verificar sua concepção de violência, ela relata só ter sido agredida uma única
vez, com um empurrão, configurando a violência física. Em seguida, ao falar
sobre a motivação da violência, utiliza o verbo “bater”, o que no nosso
entendimento é uma gradação dos atos que configuram a violência física. Socorro
diz que esse “único” episódio foi há muito tempo, mas mais adiante na
entrevista, diz que fazia três meses que o companheiro deixou de agredi-la.
Assim, Socorro pareceu não reconhecer as inúmeras violências que sofreu ou, no
mínimo, tentou escondê-las, diminuindo a gravidade dos fatos. Afinal, numa
sociedade de base coronelista, a mulher deve ser submissa ao marido, pronta
para servi-lo.
A
segunda categoria analítica buscou compreender as relações de gênero existentes
na situação de violência doméstica contra as mulheres. Esperança relata uma
situação: “Minha filha tinha quebrado o braço, eu estava trabalhando e ele [o
marido] em casa, sem fazer nada. Mas ele dizia que eu tinha que levar ela ao
médico porque eu era a mãe”. As situações domésticas e familiares, portanto,
são legitimadas como funções da mulher e não do homem. Mesmo quando a mulher já
ultrapassou o âmbito privado e conseguiu adentrar o mundo público através do
mercado de trabalho, ela é sobrecarregada pelas tarefas domésticas, ainda
entendidas como exclusivas das mulheres.
A
entrevistada Superação acredita que já não há mais tanta exigência para que a
mulher seja apenas esposa e mãe, ou seja, a sociedade compreende e aceita com
mais facilidade o fato da mulher estudar e trabalhar, por exemplo. Por outro
lado, confirma que algumas pessoas criticam a postura de uma mulher mais
independente, que não vive apenas para o marido e para os filhos. Isto porque,
como pontua Scott (1995), os atributos culturais impostos para cada sexo
reforçam o que é considerado para o homem e para a mulher. No caso da
entrevistada, seu mergulho no mundo do trabalho, âmbito público, é tido como um
atributo masculino, e por isso carregado de preconceito. Foi justamente num dia
em que trabalhou até tarde que seu marido cometeu a agressão física que a
deixou com várias marcas no corpo – e na mente.
Para
a entrevistada Mudança, as mulheres do Sertão têm medo de denunciar o marido agressor
(ela mesma não o fez), e que em cidades grandes como as capitais, isso não
aconteceria, pois as mulheres denunciam logo. Importante ressaltar que Mudança
já morou em São Paulo, quando “fugiu” do marido agressor. Segundo a
entrevistada, em municípios pequenos rapidamente sabe-se quem denunciou algum
crime. No entanto, diz que isto acontece porque “a maioria das mulheres daqui
não tem coragem, e é ‘besta’. Hoje, se o ‘cabra’ [o homem] me bater, ele só
bate uma vez, eu denuncio”. Essa ideia da mulher sertaneja como frágil e sem
coragem de denunciar o agressor está ligada à figura dos coronéis, concebidos
como homens autoritários, brutos e ignorantes, assim como era o primeiro
companheiro de Mudança, que ela nunca denunciou, preferindo fugir. A mulher era
muitas vezes considerada indefesa, e precisava do homem pra lhe proteger. No
entanto, muitas vezes, era esse homem “protetor” que cometia a violência.
A
última categoria analítica foi sobre as relações de poder, em que buscamos
compreender a cultura patriarcal e a dominação masculina existente na sociedade.
A entrevistada Esperança pontua que a dominação masculina é exercida
constantemente, mesmo que existam formas de resistência e contestação. A ideia
de que o homem é “dono” da mulher rompe até mesmo as barreiras do casamento: “[mesmo
depois de separada] ele queria continuar mandando em mim. Porque eu ainda
entrava na onda, numa forma meio inconsciente, me via escrava de umas coisas,
ele me manipulava, ligava pra mim direto. Era horrível. Parecia filme de terror”.
Essa dominação
também é um reflexo da sociedade patriarcal em que vivemos onde o poder do pai
passa para o marido. Através do recorte sertanejo, trazemos a contribuição de
Albuquerque Jr. (2001). Segundo o autor, alimentar a ideia do homem do sertão
como “cabra-macho” contribui para naturalizar a relação entre homens e mulheres
baseada num modelo de masculinidade que vigora desde o Brasil Colônia: um homem
corajoso, viril e valente.
Uma
questão importante é trazida pela entrevistada Superação – o fato de seu
ex-marido não cumprir a medida protetiva: “Na realidade, não é uma coisa que
parte dele. Os lugares, eu evito completamente, eu vivo minha vida tentando
evitar [o encontro]”. Isso nos remete ao poder dos “coronéis” do sertão
nordestino, que eram figuras de grande influência e submetiam ao seu poder os delegados
e os juízes. Não sabemos se este é o caso, mas a analogia é pertinente. Por
outro lado, reforça-nos a ideia de que o homem é do âmbito público e que por
isso não tem seu espaço restringido; enquanto a mulher é do âmbito do privado,
e deveria se restringir à sua casa.
A
entrevistada Socorro nos revela outro lado da situação de violência: ela mantém
financeiramente a casa, já que o companheiro está desempregado. Mesmo assim, a
dominação masculina permanece. Socorro, inclusive, explica a agressão que
sofreu um dia, dizendo que foi ela que começou. Por mais que a mulher seja
provedora financeira da casa, o homem permanece como provedor moral,
reafirmando a posição da mulher como submissa ao homem. Essa situação é
corroborada pela pesquisa do IPEA (Garcia, Freitas, Silva & Höfelmann,
2014) que apontou que para 64% dos entrevistados, o homem deve ser o chefe do
lar, apesar do número de mulheres como principal provedora da família só
aumentar.
Na pesquisa aqui
apresentada, foi de suma importância a narrativa de Felicidade quando ela
resgata uma fala de sua mãe: “Minha mãe diz: Mas minha filha, ‘palavrão’
[palavra considerada vulgar, imprópria] não dói. Tu não lembra que teu pai me
xingava [insultava]?”. Reforçando
essa situação, Felicidade ainda menciona que todas as irmãs também já passaram
por momentos difíceis no casamento, ou pior, segundo ela, porque o marido de
uma delas agredia fisicamente. Essa afirmação aponta o macho agressivo, que não
demonstra fraqueza, é frio e cruel, conforme Albuquerque Jr. (2003), e que
ainda é legitimado na cultura sertaneja. Ou seja, homem tem que ser “macho” e
as mulheres enquanto seres “frágeis” tem que se conformar com algum tipo de
violência, e melhor ainda se for “apenas” verbal, já que segundo Felicidade seu
marido diz: “Eu te xingo [insulto] para não te bater”. Podemos pensar o quanto
esta frase traz a violência simbólica que às mulheres são submetidas
cotidianamente.
A entrevistada
Mudança relata algo impressionante e até mesmo cruel. No episódio em que
comenta ter sofrido uma agressão física intensa, com chutes em seu rosto, ela
disse que não procurou nenhum serviço de saúde, cuidou dos ferimentos em casa,
visto que seu companheiro não a permitia sair. O cerceamento da vida da mulher
numa relação de poder desigual tem alcances em todas as áreas de sua vida,
inclusive nas questões da saúde. É claro que isso se devia ao fato que, talvez,
Mudança tivesse que explicar os ferimentos, e algum profissional poderia perceber
que era devido a uma violência. Importante destacar que o poder tem alcance no
corpo, marca, investe, sujeitando-o. É justamente no corpo que o homem mais demonstra
sua dominação sobre a mulher.
Conclusões
A violência contra as mulheres,
principalmente a cometida no âmbito doméstico, talvez seja a expressão
exacerbada da insuficiente autonomia das mulheres em várias situações, seja por
motivações financeiras, envolvimento emocional e afetivo ou ainda, pelas
próprias convenções de gênero, que atribuem papéis definidos socialmente para
homens e mulheres os quais, embora cada vez mais assumam identidades múltiplas,
ainda se inserem nessa ordem social e familiar persistentemente patriarcal.
Essas concepções expressam a desigualdade de poder que marca o próprio conceito
de gênero, fazendo com que o considerado “feminino” seja frequentemente
desvalorizado em relação ao “masculino”.
Concluímos que,
apesar de compreender as agressões que sofrem como uma situação de violência,
as mulheres minimizam a gravidade. Nossos resultados também revelam que a
mulher do Sertão brasileiro, atualmente, não se vê apenas no papel de mãe e
esposa, pois conquistou sua liberdade, chegando ao espaço público, encontrando
seu lugar no mercado de trabalho e nos estudos; no entanto, a hegemonia
masculina ainda é muito presente. A mulher oscila entre sua antiga posição,
restrita ao papel de esposa e mãe, e a atual. Em virtude do paradigma dominante
em nossa sociedade, a mulher acumulou diversos papéis, que a sobrecarregam. De
alguma forma, as mulheres ainda percebem certa discriminação quando elas saem
do restrito mundo privado, e os dados mostram que não houve consenso entre as
entrevistadas sobre se existe diferença das relações de gênero e de poder no Sertão
e em outros lugares, como a capital.
O gênero, como
debatido nesta pesquisa baseado nas ideias de Scott e Lauretis, é uma ação
contínua das relações sociais entre homens e mulheres, sendo que essas relações
ainda são desiguais na maioria das sociedades. Importante refletir sobre um
aspecto: a mulher que vive numa relação em que sofre agressões físicas,
psicológicas e morais constantes, às vezes, para romper este laço tem que mudar
completamente sua vida, abandonando casa, família, amigos, enfim, tudo o que
conhece e construiu, como o caso da entrevistada Mudança, e até mesmo de
Esperança, que terminou ficando longe dos filhos. É o lado mais perverso da
violência, onde quem mais sofre com a situação, também tende a ter as maiores
perdas com a separação; essas perdas não são apenas financeiras, mas
principalmente emocionais. Talvez a frase mais marcante tenha sido a da
entrevistada Felicidade: seu marido diz que a agride verbalmente para não
bater, como se a violência verbal/psicológica fosse menos grave que a violência
física.
Diante do exposto,
apesar dos significativos avanços e conquistas históricas alcançadas pelas
mulheres – afinal, de totalmente submissa ao poder masculino, lutou para
conseguir maior espaço no lar e visibilidade no espaço público –, no Brasil
ainda vigoram padrões, valores e atitudes discriminatórias. As novas dinâmicas
macrossociais acarretaram mudanças que repercutiram no âmbito da família e nas
relações de gênero. A inserção cada vez maior da mulher no mercado de trabalho,
a influência dos movimentos feministas pela igualdade de direitos, o avanço da
ciência em relação aos métodos contraceptivos, a melhoria educacional das
mulheres, dentre outras, trazem um conjunto de “novos valores”, ligados a uma
situação mais igualitária entre o homem e a mulher. Juntam-se a isto, mudanças
demográficas, econômicas, políticas e culturais.
No entanto, nos
espaços públicos e privados continuam as dicotomias, mesmo com a mulher tendo
maior acesso ao mundo público através do trabalho e da escolarização. Parece
inegável o reconhecimento de mudanças significativas, trazidas por este novo
contexto, nos padrões de relações de gênero e a nova configuração das relações
de poder que as envolvem. Ou seja, mesmo que as mulheres tenham conquistado
avanços significativos como o direito ao voto, ao trabalho fora do ambiente
doméstico e à educação, algumas ainda permanecem submissas aos homens devido às
relações de gênero e de poder tão fortemente arraigadas na nossa sociedade, que
não é diferente no Sertão do Brasil.
Vivendo na
caatinga, um ambiente castigado pela escassez de chuvas e aridez, o sertanejo
foi, e ainda é considerado um forte. Essa força e coragem para sobreviver foram
absorvidas também nas relações entre homens e mulheres. A imagem socialmente
compartilhada é de um homem sertanejo forte, valente, com uma peixeira na
cintura, sempre pronto para resolver seus problemas “na ponta da faca” (com
violência). Essa imagem é principalmente ligada ao fenômeno do cangaço,
considerando os cangaceiros como bandos de homens armados e sem piedade, que
roubavam, saqueavam e matavam todos que viam pela frente. No entanto, mesmo não
sendo necessariamente vinculado à violência extrema, posto que muitas vezes é
considerado um fenômeno político, o coronelismo também deixou herança nas
relações de gênero, já que os coronéis eram latifundiários, tinham autoridade
sobre seus “súditos” (principalmente a população mais pobre), e esse poder
certamente era refletido dentro de casa. Ainda hoje o homem é considerado como
aquele que deve ser o chefe, o provedor financeiro e moral da família.
Por fim,
esclarecemos que este estudo não tenta demonstrar que a violência contra a
mulher acontece mais no Sertão do que em outros lugares, mas evidencia que as
propostas de intervenções não podem ser desvinculadas das questões socioculturais
e históricas. É importante pensar que a região tem uma grande zona rural, altos
índices de analfabetismo e evasão escolar, o mercado de trabalho é escasso,
entre outros fatores. E por todas essas questões, não podemos esconder que o Sertão,
lócus de nossa pesquisa, ainda apresenta números alarmantes de violência contra
as mulheres.
Referências
Ab'Sáber, A. N.
(2003). Os domínios de natureza no
Brasil: potencialidades paisagísticas. Cotia: Ateliê Editorial.
Albuquerque Jr.,
D. M. de. (2001). A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo, Brasil: Cortez.
______ (2003). Nordestino: uma invenção
do falo – uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió, Brasil:
Catavento.
Amado, J.
(1995). “Região, sertão, nação”. Revista
Estudos Históricos, 8(15), 145-151.
Bardin, L.
(2004). Análise de Conteúdo. Lisboa:
Edições 70.
Cunha, E.
(1995). Os sertões. Rio de Janeiro:
Francisco Alves.
Diário Oficial da
União. (2006). Lei nº 11.340, de 7 de agosto de
2006. Lei Maria da Penha. Cria mecanismo para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher. Recuperado em 27 de março de 2018, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
D’Oliveira, A. F.
P. L. (1996). Gênero e violência nas práticas de saúde: contribuição ao estudo da
atenção integral à saúde da mulher. (Dissertação de Mestrado). Faculdade de
Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Falci, M. K.
(2000). Mulheres do sertão nordestino. Em M. Del Priore (Org.), História das mulheres no Brasil (pp.
241-277). São Paulo, Brasil:
Contexto.
Freitas, A. P. S. de.
(2005). A presença feminina no cangaço:
práticas e representações (1930 – 1940). (Dissertação de Mestrado).
Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita
Filho, Assis, São Paulo, Brasil.
Garcia, L. P., Freitas,
L. R. S. de, Silva, G. D. M. da, & Höfelmann, D. A. (2014).
Violência contra a mulher: feminicídios
no Brasil. Recuperado em 02 de abril de 2018, http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf.
IPEA. Instituto
de Pesquisas e Economia Aplicada. (1993). O mapa da fome III: Indicadores sobre a
Indigência no Brasil (classificação absoluta e relativa por municípios). A.
M. Pelliano (Coord.). Brasília: IPEA.
______. (2003). Renda 3. Recuperado em 10 de agosto de 2018, http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/livros/03.renda.pdf.
Instituto
Patrícia Galvão. (2013). Percepção da sociedade sobre violência e assassinatos de mulheres. Recuperado
em 28 de fevereiro de 2016, http://www.spm.gov.br/publicacoesteste/publicacoes/2013/livro_pesquisa_violencia.pdf.
Janotti, M. L. M.
(1984). O coronelismo: uma política de
compromissos. São Paulo, Brasil: Brasiliense.
Lauretis, T. (1994). “A Tecnologia do Gênero”.
Em H. Buarque de Hollanda (Org.), Tendências
e Impasses: O feminismo como crítica da cultura (pp. 206-241). Rio de Janeiro, Brasil: Rocco.
Pinheiro, P. S., & Almeida, G.
(2003). Violência Urbana. São Paulo, Brasil: Publifolha.
Pitanguy, J. (2003). “Introdução”. Em M.
V. J. Pena; M. C. Correia & B. van Bronkhorst. A questão de gênero no Brasil (pp. 12-26). Rio de Janeiro, Brasil: CEPIA/Banco Mundial.
Queiroz, M. I. P. de. (1986). História do cangaço. São Paulo, Brasil:
Global.
Scott, J. W. (1995). “Gênero: uma
categoria útil de análise histórica”. Revista
Educação & Realidade. Porto
Alegre, 20(2), 71-99. Recuperado em 07 de abril de 2017, http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721/40667.
Venturini, G., Recamán, M., & Oliveira,
S. (Orgs.). (2004). A mulher brasileira
nos espaços públicos e privados. São Paulo, Brasil: Perseu Abramo.
Waiselfisz, J. J. (2015). Mapa da Violência 2015. Homicídio de
mulheres no Brasil. Brasília, Brasil: Flacso, Instituto Sangari. Recuperado
em 12 de agosto de 2016, https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf.
[1] Este
trabalho é derivado da dissertação de mestrado: “Violência doméstica contra as
mulheres: relações de gênero e de poder no sertão de Pernambuco”.
[2] Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Brasil.
Correo electrónico: kalline_lira@hotmail.com
[3] Os
nomes aqui apresentados são fictícios e foram escolhidos pelas próprias
entrevistadas.