A representação do empoderamento
feminino na teledramaturgia brasileira
The
Representation of Feminine Empowerment in the Brazilian Teledramaturgy
La
representación del empoderamiento
femenino en la teledramaturgia brasileña
Jéfferson
Balbino[1]
Resumo
Entre
1979 e 1980 foi ao ar, pela TV Globo, a série Malu Mulher, estrelada pela atriz Regina Duarte. Criada pelo
diretor Daniel Filho, a série é um marco na história da teledramaturgia
brasileira, haja vista que foi uma obra midiática que tinha como foco barrar o
conservadorismo vigente em nossa sociedade trazendo para o centro de discussões
o novo perfil da mulher brasileira: independente e dona de si própria. A série
tinha a missão de debater temas sociais que viria, sobretudo, nas décadas
seguintes, se tornar pauta na agenda feminista como, por exemplo, divórcio,
aborto, métodos contraceptivos, maternidade, violência doméstica,
homossexualidade feminina, menopausa, preconceito contra as mulheres
desquitadas, infidelidade, primeira menstruação... Para este estudo faremos uso
do box de DVDs, que contém nove episódios, da série Malu Mulher, lançada pela Globo Marcas, em 2006. Objetivaremos,
nesse texto, estudar como houve a representação da emancipação feminina através
dessa série de televisão. Para tal intento, corroboremo-nos nas teorias de
algumas historiadoras com importantes estudos feministas, dentre elas: Raquel
de Barros Miguel e Carmen Rial (2012), Maria Zilda Matos e Andrea Borelli
(2012) e Carla Bassanezi Pinksy (2014).
Palavras-chave: teledramaturgia, representação,
emancipação feminina, sociedade
Abstract
Between
1979 and 1980 the series Malu Woman
was aired on Globo TV, starring actress Regina Duarte. Created by director
Daniel Filho, the series is a milestone in the history of brazilian teledramaturgy,
given that it was a media work that had as its focus the barring of
conservatism in our society bringing to the discussion center the new profile
of brazilian women: independent and owner of herself. The series had the
mission of discussing social issues that would come, especially, in the
following decades, to become agenda in the feminist agenda as, for example,
divorce, abortion, contraceptive methods, maternity, domestic violence,
feminine homosexuality, menopause, prejudice against women unhappiness,
infidelity, first menstruation... For this study we will use the DVD box, which
contains nine episodes, from the series Malu
Woman, launched by Globo Brands in 2006. In this chapter, we will study how
there was representation of female emancipation through this television series.
For that purpose, let us corroborate the theories of some historians with
important feminist studies, among them: Raquel de Barros Miguel and Carmen Rial
(2012), Maria Zilda Matos and Andrea Borelli (2012) and Carla Bassanezi Pinksy
(2014).
Keywords:
teledramaturgy,
representation, female emancipation, society
Resumen
Entre
1979 y 1980, apareció en la serie Malu
Mujer de TV Globo, como la actriz Regina Duarte. Creada por el director
Daniel Filho, una serie y un hito en la historia del drama televisivo
brasileño, es un trabajo mediático que se enfoca en detener el conservadurismo
actual en nuestra sociedad y traer al centro de discusión un nuevo perfil de la
mujer brasileña: independiente y dueña de sí misma. Una serie de temas sociales
que se han debatido, principalmente, en las últimas décadas, se convertirán en
los principios rectores de la agenda feminista, por ejemplo, el divorcio,
aborto, métodos anticonceptivos, maternidad, violencia doméstica,
homosexualidad femenina, menopausia, preconcepción contra la mujer, represalia,
infidelidad, primera menstruación, etc. Para este estudio se usará el DVD, que
contiene nueve episodios de la serie Malu
Mujer, lanzada por Globo Brands en 2006. En el siguiente capítulo, se
estudiará cómo se representó la emancipación femenina a través de esta serie de
televisión. Para ello, se utilizarán las teorías de algunas historiadoras con
importantes estudios feministas, entre ellas: Raquel de Barros Miguel y Carmen
Rial (2012), Maria Zilda Matos y Andrea Borelli (2012) y Carla Bassanezi Pinksy
(2014).
Palabras clave: representación, emancipación feminina, sociedad
Recepción: 7 de agosto de 2020/Aceptación: 10 de
febrero de 2021
Introdução
A
série brasileira Malu Mulher foi ao
ar, pela TV Globo, entre 24 de maio de 1979 a 22 de dezembro de 1980, exibida
em 76 episódios, às quintas-feiras (no primeiro ano de exibição) e às
segundas-feiras (no segundo ano de exibição), às 22 horas. A série foi
idealizada por Daniel Filho e escrita por Armando Costa, Lenita Plonczynski,
Renata Palottini, Manoel Carlos e Euclides Marinho. E contou com a direção de
Daniel Filho, Paulo Afonso Grisolli e Dennis Carvalho e produção de Maria
Carmem Barbosa. Foi também inspirada no filme norte-americano Uma Mulher Descasada, de Paul Mazurkis. Malu Mulher tinha como objetivo “compor
um retrato da condição da mulher brasileira, mostrando as dificuldades que ela
enfrenta no cotidiano”. (Dicionário
da TV Globo, 2003, p. 386).
Malu
Mulher narra as experiências vivenciadas pela jovem Maria Lúcia, Malu
(Regina Duarte), uma socióloga que viria a ser uma mulher desquitada, com 32
anos, e com uma filha adolescente, Elisa (Narjara Turetta), de 12 anos. Cabe
ressaltar que foi a própria atriz Regina Duarte que deu nome à sua personagem.
(Memória Globo, 2008, p. 180).
A narrativa se inicia com a
protagonista Malu determinada a romper seu casamento com Pedro Henrique (Dênnis
Carvalho). À margem de Malu surge, ao longo da série, outras mulheres que
enfrentam diversos problemas sociais, inclusive, temas presentes na pauta
feminista como, por exemplo, aborto, mulheres no mercado de trabalho, divórcio,
a luta feminina pela independência, etc.
A composição da personagem central
da série foi algo construído por várias mãos, uma vez que para chegar a Malu
muitas ideias foram debatidas com a equipe da série (que era em sua maioria
composta por mulheres). Não foi por mero acaso que Malu era socióloga por
formação, afinal, para viver uma mulher transgressora que questionava a todo
tempo a hierarquização machista que imperava (e ainda impera) em nossa
sociedade, somente poderia ser uma mulher com ideais vanguardistas e ser
socióloga era a profissão mais que ideal para ela seguir. A equipe da série
chegou a esse consenso, em relação à profissão da personagem-título, após a
socióloga e ex-primeira-dama Ruth Cardoso, muito amiga da atriz Regina Duarte,
ter participado de uma reunião com a equipe da série. Outro fato que propagou a
certeza da escolha da profissão de Malu se deu pelo fato de que a esposa do
roteirista Euclydes Marinho, a Denise Bandeira, ser também socióloga. (Daniel
Filho, 2001, p. 92).
Segundo o diretor Daniel Filho, o tom realista da série
ocorreu a partir de uma “indicação de dona Ruth” para que os pesquisadores da
equipe fossem até a UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), visto que “que
na época era o máximo de vanguarda em sociologia”. Sendo assim, a pesquisadora
da TV Globo, Cristina Médicis esteve na universidade para entrar em contato com
acadêmicas de sociologia e foi “de gravador em punho, pesquisando o que era ser
uma socióloga e fotografando as casas delas” (Daniel Filho, 2001, pp. 92-93).
Portanto, foi necessária a realização de uma profícua pesquisa para dar o tom
de verossimilhança para a socióloga Malu. Inclusive, o cenário da casa de Malu
foi inspirado nas casas das sociólogas entrevistadas nessa pesquisa, afinal em
suas casas “sempre tinha uma decoração indígena, uma coisa meio de antropóloga”
(Daniel Filho, 2001, p. 93).
Malu é apresentada para o público de duas maneiras: i) como
uma mulher insegura, com incertezas e que lutava para conquistar um espaço no
mercado de trabalho; ii) E, posteriormente, (no segundo ano da série) a
personagem é a representação de uma mulher madura, com vida financeira estável
e com um estado emocional equilibrado. A respeito disso, o Dicionário da TV
Globo aponta que
A
partir de 1980, a protagonista está mais amadurecida e consegue um trabalho
fixo num instituto de pesquisa. Com isso, inicia-se uma nova fase em sua vida:
a tranqüilidade proporcionada pela quitação do apartamento, a compra de um
carro em bom estado e a contratação de uma empregada. Com essa estabilidade,
Malu está preparada para pensar mais em si mesma e em seus problemas, pronta a
recomeçar sua vida afetiva. (Dicionário da TV Globo, 2003, p. 386)
Posto
isto, observa-se que a guinada na vida da personagem principal acontece de
maneira gradativa o que de certa forma ‘instrui’ a mulher que vivencia situação
parecida a de Malu no início da separação: com filha menor de idade,
desempregada e tendo que viver apenas com uma baixa pensão alimentícia.
No segundo ano da série, a personagem-título é representada
como uma mulher ainda mais independente, realizada profissionalmente, com a
filha bem instruída... E assim demonstra ao grande público que a mulher pode
conquistar tudo o que ela quiser, mesmo não tendo um marido para se amparar.
Em consonância a isso, na obra Nova História das Mulheres no Brasil, às historiadoras Raquel de
Barros Miguel e Carmen Rial, no capítulo Programa
de Mulher, trazem um estudo sobre como a mulher conquistou, mesmo que aos
poucos, o seu espaço de sociabilidade:
A
mulher conquistou, aos poucos, o poder de escolher como passar seu tempo
considerado livre. Ainda que as mulheres não estejam isentas de
pré-julgamentos, hoje, praticamente todas as atividades de lazer lhes são
possíveis. Mesmo diante de muitas permanências – calcadas, especialmente, nas
ideias tradicionais do papel feminino –, mudanças são visíveis no campo do
lazer das mulheres.
Essa
teoria de Miguel e Rial pode, perfeitamente, ser aplicado à Malu, já que ela é
a representação dessa mulher que foi, gradativamente, conquistando sua
liberdade. E, é por mulheres como Malu –e outras vanguardistas que se
destacavam nos anos 1960/1970– que atividades comuns em nossa contemporaneidade
soa como algo corriqueiro, por exemplo, a “mulher viajar sozinha, ir à praia de
biquíni, escolher o que ler ou ver no cinema (ou navegar na internet) sem
restrições são, na verdade, frutos de conquistas lentas de mulheres de outras
gerações” (
Um breve painel da sociedade brasileira
entre 1979 e 1980
A
transição das décadas de 1960 para 1970 marcou o início da grande revolução
sexual que abriu as portas para a chamada ‘liberdade de gênero’. Esse período
pode ser, coincidentemente, marcado pelo ato de transgressão em “dar voz à luta
contra a opressão social causada pelas categorias fixas de masculinidade e
feminilidade, contra a imposição obrigatória da vinculação entre sexo e gênero”
(Ribeiro, 2010, p. 36).
Em referência a mobilização que acomete em torno da pauta
feminina nos anos 1970, a historiadora Claricia Otto, da Universidade Federal
de Santa Catarina, em seu artigo O
Feminino no Brasil: suas múltiplas faces, oriundo da Uma História do Feminismo no Brasil, de autoria da também
historiadora Céli Regina Jardim
Entre
os eventos que marcaram a entrada definitiva das mulheres e das questões por
elas levantadas, na esfera pública, destaca-se ainda o Ano Internacional da
Mulher, em 1975, decretado pela Organização das Nações Unidas (ONU). O feminismo
no Brasil se fortalece com o evento organizado para comemorar o Ano
Internacional, realizado no Rio de Janeiro sob o título “O papel e o
comportamento da mulher na realidade brasileira”, e com a criação do Centro de
Desenvolvimento da Mulher Brasileira. [...]. O ano de 1975 foi também o da
organização do Movimento Feminino pela Anistia, fundado por Terezinha Zerbini.
As mulheres exiladas nos Estados Unidos e na Europa voltavam para o Brasil
trazendo uma nova forma de pensar sua condição de mulher, em que somente os
papéis de mãe, companheira e esposa (submissa e dócil) não mais serviam. (Otto,
2004, p. 239)
Partindo
para o contexto político da época, sabe-se que no final dos anos 1970, o Brasil
era comandado pelo general João Baptista de Oliveira Figueiredo que é
considerado o “presidente da abertura política”, na reta final da Ditadura
Militar no Brasil.
Pode-se dizer que os anos 1980 começam ainda em 1977, pois
foi o ano que surgiu a chamada dance
music, inspirada no filme Saturday
Night Fever (Os Embalos de Sábado à
Noite). No Brasil, essa efervescência trouxe o glamour e o brilho das
discotecas, o que fez os jovens brasileiros acolherem esse estilo em detrimento
do hippie, a tendência anterior.
Nesse período, houve ainda um substancial aumento no número
de academias de ginásticas no Brasil. As pessoas que frequentavam eram adeptas
ao uso de collants e polainas para frequentarem as aulas de aeróbicas. O jeans, o gel nos cabelos e os tênis
também conquistou a predileção dos jovens e até das pessoas mais velhas daquela
época.
Em 1978, a Emenda Constitucional nº.
11 revogou o AI-5. E, em 1979, o general Figueiredo assinou o projeto de
anistia que, nessa conjuntura, não era favorável aos terroristas, militares e
funcionários com cargos cassados.
Ainda em 1979, houve a reforma partidária que colocou fim ao
bipartidarismo no Brasil, algo que beneficiou a sociedade visto que propiciou o
surgimento de uma abertura democrática basta ver que com isso foi possível a
criação de novos partidos políticos como, por exemplo, PT (Partido dos
Trabalhadores), PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), PTB
(Partido Trabalhista Brasileiro) e PSD (Partido Social Democrático). Portanto,
nesse período houve –por parte do Congresso Nacional– a extinção da Arena e do
MDB que eram as únicas esferas do bipartidarismo brasileiro.
Também, foi nesse período que houve a aprovação da lei de
Anistia; as primeiras eleições diretas para governador; a transformação em
Estado do território rondoniense; a aprovação do novo Estatuto dos Estrangeiros
e a derrota, no Congresso Nacional, da emenda Dante de Oliveira que propunha
eleições diretas para a presidência da República. (Escola Viva, 1998, p. 38).
Nessa conjuntura historiográfica há
a inserção do feminismo, no Brasil, que acontece por influência dos pensamentos
das escritoras Betty Friedan e Glória Steinem, nos anos 1960, e por Germaine
Greer, nos anos 1970. Todavia, no Brasil o feminismo acontecia de maneira
diferenciada do que ocorria em outras partes do mundo, tendo em conta que a
ditadura militar regia o país. A despeito disso, Barreira (2003) argumenta que
ao contrário do movimento feminista de outros países “que era influenciado por
uma democracia que expunha de forma aberta a especificidade das lutas sociais
das mulheres, no Brasil o paradoxo estava na dimensão da luta unitária contra a
ditadura e a busca de um feminismo mais autônomo” (Barreira, 2003, pp.
136-137).
Em 1979, a música brasileira
denuncia as arbitrariedades do sistema machista que reinava (e ainda reina),
desde do surgimento da sociedade brasileira. A cantora Ângela Ro-Ro trazia, em
seu disco de estreia, a questão da emancipação feminina na canção Agito e Uso, composta pela mesma. Nessa
música, a cantora externaliza todo seu anseio de mulher por liberdade e por
igualdade, demonstrando ser veementemente contra as práticas abusivas. A
cantora trouxe nessa e em outras canções de seu disco de estreia temas
polêmicos e que desafiava todos os padrões da época. Por toda essa altivez que
Ângela Ro-Ro (homossexual assumida) não hesita em mandar “as regrinhas do bom
comportamento para as cucuias”.
Voltando para o exame da série, cabe ressaltar que Malu Mulher também, “reuniu números
musicais e depoimentos de cantoras e compositoras brasileiras, tendo como foco
principal a atuação feminina na Música Popular Brasileira” (Dicionário da TV
Globo, 2003, p. 387). Com uma trilha sonora composta por grandes nomes
femininos da música brasileira como: Gal Costa, Maria Bethânia, Rita Lee, Elis
Regina, Fafá de Belém, Marina, Simone, Zezé Motta, Joanna e Quarteto em Cy, a
série não apenas projetou a obra das respectivas cantoras como demonstrou que o
palco é também lugar de mulher.
Portanto, a cultura brasileira já pré-anunciava novos tempos
da mulher em espaços de sociabilidade. E foi, justamente, nesse período de
efervescência sociocultural que a TV Globo lançou a série Malu Mulher trazendo para a tela da televisão “várias das questões
que eram discutidas nas centenas de grupos de mulheres que foram criados no
país nessa época”, ou seja, os temas da pauta do movimento feminista brasileiro
(Corrêa, 2001, p. 16).
Nos anos 1980, as mulheres ingressam de maneira concreta no
mercado de trabalho. E algumas delas almejando reivindicar cargos maiores como,
por exemplo, os de chefia, passaram a adotar um visual mais próximo ao
masculino, isto é, calças com cinturas altas e ombreiras nos blazers.
O crescimento da partição feminina no mercado de trabalho é
uma das maiores transformações ocorridas na sociedade brasileira. A inserção
das mulheres no mercado de trabalho ocorre, sobretudo, devido à necessidade
econômica, motivada pela busca de uma complementação da renda familiar.
No Brasil, a década de 1980 é também marcada pelo fato de
ser quando o feminismo enfrentou a redemocratização brasileira e quando começou
a expandir na Academia o número de pesquisas sobre estudos feministas. Assim
sendo, nesse período
[...]
duas questões tiveram de ser enfrentadas: a unidade do movimento ameaçada pela
reforma partidária de 1979, que dividiu as oposições, e a relação do movimento
feminista com os governos democráticos que viriam a se estabelecer, principalmente
quando o Partido Democrático Brasileiro (PMDB) começou a ganhar as eleições
estaduais. Surgiram grupos feministas temáticos, como também houve espaço para
o surgimento e o feminismo acadêmico, ancorado no Departamento de Pesquisa da
Fundação Carlos Chagas, em São Paulo, e em pesquisas de ciências humanas e
educação realizadas nas grandes universidades do país, em algumas das quais
surgiram Núcleos de Pesquisa em Estudos da Mulher. (Otto, 2004, pp. 239-240)
Graças
ao empenho do movimento feminista que ao longo da década de 1980 começaram a
aparecer às conquistas de tantas lutas como a implantação do Programa de
Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), criado pelo Ministério da Saúde,
programa este que “envolvia três temas: planejamento familiar, sexualidade e
aborto” (Otto, 2004, p. 240).
No livro Nova História
das Mulheres no Brasil, organizado por Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria
Pedro, as historiadoras Maria Izilda Matos e Andrea Borreli relatam como
transcorreu a interposição feminina no mercado de trabalho brasileiro:
No
Brasil, a legislação que regulamenta o trabalho feminino foi implantada de
forma assistemática, iniciando-se nos finais da década de 1910, pelo estado de
São Paulo. Nos anos 1930, cresceu a interferência federal na órbita da
regulamentação do trabalho e, no que se refere às mulheres, culminou no item
“Da proteção ao trabalho da mulher” da CLT (1943). Por meio dele, ficou
estabelecida a equiparação salarial entre homens e mulheres. Além disso,
coibiu-se a participação de mulheres em tarefas inadequadas a sua capacidade
física e/ou que colocassem em risco a saúde feminina. Com exceção dos empregos
em telefonia, radiotelefonia, enfermagem, casas de espetáculos e diversão,
hotéis e bares, o trabalho noturno também foi vetado às mulheres.
Regulamentou-se ainda a licença-maternidade e a exigência de creches em
empresas com mais de 30 trabalhadoras. Entretanto, apesar dessas medidas,
discriminações, ilegalidades e abusos continuaram a persistir por décadas.
(Matos y Borelli en Pinsky, 2016, pp. 141-142)
Não
obstante, as historiadoras alegam que:
[...]
as mulheres só adquiriram o direito de trabalhar sem a autorização do marido em
1943 e apenas com o Estatuto da Mulher Casada (1962) é que se retirou do Código
Civil o direito do marido de impedir sua esposa de trabalhar fora do domicílio.
A partir da década de 1960, novas leis foram criadas no sentido de coibir as
diferenças por motivos de sexo com relação a salários, critérios de admissão, exercício
das funções e promoção na carreira. A licença-maternidade foi ampliada para 120
dias, sem prejuízo do salário, e deu garantias de estabilidade à gestante
(1988), sendo os benefícios estendidos também às mães adotivas (2002). (Matos y
Borelli en Pinsky, 2016, p. 142)
Matos
& Borelli ainda afirmam que o Estado sempre interferiu com ambiguidade no
trabalho feminino visto que ora reforçava “a importância da maternidade e os
cuidados femininos do lar”, ora facilitava a incorporação feminina ao mercado
de trabalho, justamente, por necessitar dessa mão de obra feminina.
Sobre isso as historiadoras ponderam que:
A
partir da década de 1960, a empregabilidade feminina cresceria de forma
sistemática tornando-se constante, intensa e diversificada. Vários elementos
contribuíram para tanto. A redução do poder de compra e o arrocho salarial
colocaram em xeque a sobrevivência e capacidade de consumo das famílias,
levando mulheres de setores populares ao mercado de trabalho. Mudanças
comportamentais (trazidas pelos movimentos feministas e de contracultura)
alimentaram novas expectativas femininas, despertando o desejo de autonomia
financeira e de realização profissional nas mulheres das camadas médias. (Matos
y Borelli en Pinsky, 2016, pp. 142-143).
Ainda,
nos anos 1980, algumas mulheres brasileiras passaram a incorporar em seu visual
um estilo mais extravagante como, por exemplo, o uso de minissaia com legging, bermudas mais curtas e
macacões, sendo essas roupas – em sua maioria – em cores excêntricas. Houve,
também, nesse período o uso de maquiagens muito mais fortes como o uso de
batons vermelhos.
Ensinamentos através da ficção
A
série Malu Mulher contribuiu para
fortalecer a emancipação feminina, pois tratou – mesmo que de modo sutil e/ou
incipiente – de temas inerentes à pauta feminista, algo que contribuiu na luta
do movimento feminista.
Antes de adentrarmos na análise dos
episódios da série, cabe alguns esclarecimentos em relação a metodologia
utilizada para tal análise. Para esse estudo utilizamos os nove episódios que
compõem o box de DVD’s, lançado pela Globo Marcas, em 2006. Como é a premissa
desse segmento audiovisual, geralmente, são selecionados para integrar esses
compêndios os episódios de maior sucesso e repercussão junto à crítica e ao
público.
Cada episódio foi assistido por duas
vezes, sendo a primeira delas uma visão despretensiosa (de um mero
telespectador) e a segunda uma visão mais atenta (de pesquisador), isto é,
observando as intencionalidades por trás dos diálogos, dos gestos, das roupas
das personagens, da caracterização, da trilha sonora e também dos cenários. Os
dados extraídos a partir dessa visualização eram anotados para depois serem
confrontados com as fontes e assim amplamente analisados.
A seguir, veremos o modo como foi abordado
determinados temas e em que medida se deu sua contribuição para o avanço (ou
debate) das pautas feministas na sociedade brasileira.
No episódio de estreia, intitulado Acabou-se o que era doce, de autoria do
roteirista Euclydes Marinho, exibido originalmente em 24/05/1979, o público
conhece o estágio crítico –que culminaria em separação– do casal Malu e Pedro
Henrique.
Pedro Henrique representa o
protótipo do marido infiel e que não faz questão de dar a devida atenção para
sua esposa e filha. Entretanto, Malu é uma esposa que exige o que lhe é de
direito: um marido fiel e atencioso com a família. Como não consegue por vias
naturais trazer o marido para assumir o papel que lhe cabe, Malu –com sua
personalidade questionadora e contestadora– não aceita continuar vivenciando
com naturalidade aquela situação de desgaste conjugal. Contudo, seu marido se
recusa a discutir a relação, pois “casamento é assim mesmo” –como ele afirma–,
e pede que a mulher procure uma psicóloga e psicanalista para sanar todas suas
indagações conjugais. É quando Pedro e Malu se exaltam durante a discussão e
Malu acaba sendo agredida pelo marido.
Na época de exibição da série não
existia a Lei Maria da Penha[2] e as
leis brasileiras existentes, diferentemente de hoje, não condenavam como crime
agressão verbal e física contra as mulheres.
Os diálogos proferidos por Malu,
nesse primeiro episódio, são vanguardistas para o período em que foi exibido:
●
“Você nem pensa em encostar a mão em mim de novo. Te boto na
cadeia!”;
●
“Mata, mata de uma vez” [grita Malu ao levar uma bofetada no
rosto];
●
“Mulher não pode ser fragilzinha, tem que ser agressiva de vez em
quando, saber se defender”;
●
“A caderneta de poupança tem sido brilhante, mas... já como
marido...”;
●
“Acabou tudo, quero que você vai embora”.
Nesses diálogos proferidos na briga
de Malu e Pedro Henrique fica evidente os atributos da causa feminista. Além do
que soa como se Malu estivesse ensinando outras mulheres (no caso, as
telespectadoras) a se defenderem numa situação parecida.
No episódio Ainda não é a hora, de autoria de Euclydes Marinho, exibido
originalmente em 14/06/1979, a série trouxe como problemática as questões
inerentes ao aborto, a necessidade de sua legalização e o perigo que acomete a
saúde das mulheres nas clinicas clandestinas. Jô (Lucélia Santos), filha do
porteiro do prédio que Malu mora, descobre que está grávida do namorado
Jorginho (Fábio Jr.), como ainda estão na adolescência, estudando e sem emprego
ela acredita ser melhor interromper a gravidez, uma vez que crê não possuir
condições financeiras e até mesmo psicológicas para ser mãe naquele momento.
Malu leva Jô para uma consulta com seu ginecologista, o Dr.
Pompeu (Fábio Sabag). No entanto, Pompeu se recusa a fazer o aborto voluntário
de Jô, visto que é proibido por lei. Sendo assim, Jô pede ajuda de Malu para
levá-la numa clínica médica clandestina que faz, de maneira ilegal, abortos.
Ocorre que após o procedimento, Jô apresenta uma hemorragia e necessita com
urgência de cuidados médicos num hospital. E, é quando se desenvolve um dos
mais promissores diálogos feministas da série que, inclusive, evidencia a mídia
como construidora e normatizadora de discursos de gênero. Malu, em conversa com
o médico que é contrário ao fato da mulher decidir abortar uma gravidez, chama
atenção da sociedade para esse problema tão sério que é a criminalização do
aborto, maiormente, movido por preceitos e dogmas religiosos. Vejamos:
MALU
– Mas o que é que se pode fazer, enquanto não for legalizado? As infelizes das
mulheres estão nas mãos deles [dos médicos clandestinos] mesmo. Todo mundo
condena, diz que é crime, diz que é pecado, mas na hora todo mundo fecha os
olhos porque um dia pode precisar. Isso chama-se hipocrisia. [...]. Se é
necessário, se é uma coisa inevitável, porque não legalizar? Por que não tornar
menos sórdido, mais civilizado?
Nesse
episódio, em questão, Malu, demonstra ser uma mulher feminista, afinal, apoiou
a decisão individual de Jô em interromper sua gravidez.
Malu, também repudia a hipocrisia da
sociedade criminalizar o aborto. Entretanto, seus diálogos ao longo do episódio
procuram promover uma disseminação de informações precisas em relação ao uso
dos métodos contraceptivos disponíveis, ou seja, através de seu discurso Malu
‘ensina’ como a mulher pode se prevenir para evitar uma gravidez indesejada.
A respeito do controle de natalidade, Matos y Borelli
destaca que:
A
divulgação de novas possibilidades no controle da natalidade, como a difusão do
consumo da pílula contraceptiva, possibilitou às mulheres escolher o número de
filhos, diminuir e/ou postergar a maternidade, influenciando a entrada e
permanência feminina no mercado de trabalho. Contribuiu ainda para incrementar
a capacidade de investir nas carreiras profissionais. (Matos y Borelli en
Pinsky, 2016, p. 143)
No
episódio Com unhas e dentes, escrito
por Manoel Carlos, exibido originalmente em 30/08/1979, a personagem Malu traz
dados estatísticos a respeito do crescente número de desquites nas capitais
brasileiras. Embora esteja comentando essas informações para sua filha
pré-adolescente, Elisa, ela está na verdade compartilhando esses dados (que são
verídicos) com diversas mulheres que estão acompanhando a série. Inclusive,
aquelas mulheres com baixo letramento que sequer tinham consciência do
alarmante crescimento de desquites pelo país.
Não obstante, no referido episódio, Malu ajuda uma prima,
que mora no interior de Minas Gerais, e que se casa virgem aos 31 anos, a lidar
com a angústia da virgindade e a iminência da primeira relação sexual que irá
ter com seu marido.
Com referência a virgindade feminina a historiadora Carla
Bassanezi Pinski (2014), faz a seguinte menção explicativa:
Mesmo
com todas as mudanças sociais ocorridas na primeira metade do século xx, a regra que obriga as moças a
conservarem a virgindade até o casamento permanece com toda força. São raros os
homens que admitem se casar com uma mulher ‘deflorada por outro’. A anulação do
casamento devido à constatação de que a noiva não é virgem está prevista pelo
Código Civil, e o Código Penal, por sua vez, reserva punições para o
“induzimento a erro essencial” (engano quanto à virgindade da noiva) e o “crime
de sedução”. (Pinski, 2014, pp. 123-124)
Nesse
episódio, Malu reconhece “ter vergonha de não ter conseguido ser feliz com um
mesmo homem a vida inteira”. É também abordado o preconceito contra as mulheres
desquitas, uma vez que o pai de Malu pede que ela não revele para a família, do
interior de Minas Gerais, que está desquitada de Pedro Henrique, pois “nunca
houve na família uma mulher desquitada”.
Em A amiga,
escrito por Euclydes Marinho, exibido originalmente em 11/10/1979, Malu está
separada há 9 meses de Pedro Henrique e muito carente se apaixona por seu
chefe, Paulo (Ney Latorraca), entretanto, se assusta com esse novo sentimento
que não é recíproco.
O ponto crucial do referido episódio acontece quando Malu
descobre que o dono da empresa que trabalha demitiu sua colega de trabalho,
Maria (Ângela Leal), pelo fato da mesma se recusar a ir para a cama com ele.
Quando Malu toma ciência do ocorrido não titubeia e declara apoio inconteste a
Maria e juntas redigem uma carta à imprensa denunciando o assédio moral/sexual
do empresário.
Esse episódio discute algo que está em voga, atualmente, na
sociedade brasileira: a questão do assédio, sobretudo, no ambiente
profissional. Além disso, a série aborda nesse episódio a questão da
homossexualidade feminina, quando numa determinada cena, Malu e Maria após
beberem muito vinho (a ponto de se embriagarem) começam a falar de suas
frustrantes experiências com seus ex-maridos. E de repente Malu adormece e
Maria a leva ao quarto. Na seguinte cena, Malu aparece apenas de calcinha e
sutiã lendo um bilhete que Maria havia lhe deixado ao lado de sua cama –
fazendo uma alusão aos recados que alguns homens deixam para as mulheres após
uma noite de amor, ou seja, o autor deixou subentendido que pôde ter ocorrido
uma noite de amor entre Malu e Maria.
Um fato que desperta atenção nesse episódio ocorre em função
da inexistência da palavra “homossexual” em seu roteiro. Em nenhum momento,
nenhuma das personagens diz a palavra homossexual e/ou homossexualidade, embora
se trate do assunto, talvez, para driblar a Censura Federal a palavra
homossexual foi substituída por “diferente” e “pervertida”.
Na época, em declaração a Veja, o roteirista –que escreveu esse episódio– Euclydes Marinho
afirmou que conforme as orientações de seu texto, era evidente que Malu e Maria
tinham transado. Ele ainda destacou que esse episódio sofreu modificações pela
Censura Federal devido seu teor.
O segundo
disco do box da série Malu Mulher começa
com o episódio Duas vezes mulher,
escrito por Manoel Carlos, exibido originalmente em 21/04/1980, que aborda os
temas: menopausa –através de Dona Elza (Sônia Guedes), a mãe de Malu– e
primeira menstruação –através de Elisa (Narjara Turetta)– filha da
protagonista.
Atentamos
para esse dialogo sincero e repleto de cumplicidade entre Malu e Elza:
MALU
– Por que essa crise agora? Fala comigo mamãe – [desabafa Malu]. Eu sou tua
filha, eu já fui casada, eu tenho uma filha que daqui a pouco tá moça, também.
Que foi? Que foi que aconteceu?
ELZA
– Seu pai, não é?! Não sei se eu tô ficando velha. [pausa] Também, eu tenho
fugido dele. Não sei, não tenho vontade. Eu não sei se é uma coisa pra sempre.
Ah, eu tenho até medo de pensar nessas coisas.
MALU
– Claro que é uma fase... Eu sei, eu também tive uma fase assim com o Pedro
Henrique, fugia dele na cama e era uma fase, eu nem era casada há tanto tempo
com ele como você e o papai. E aí... sei lá... Acho que acontece com todo
mundo, é tão comum.
ELZA
(com repulso) – Eu sinto assim... um nojo filha.
MALU
– Ah... mamãe.
ELZA
– Depois tem feito um calor. E suor... Cheiro de cerveja. [...]. Eu não quero
não, eu não quero mesmo! Faz mais de um mês que eu tô fugindo dele. Assim... no
começo eu falei que tava com dor de cabeça, depois que eu tava com cólica e...
depois eu não falei mais nada não. Só fiquei fugindo. Até que sexta-feira ele
tentou mesmo, sabe? A força... Ele queria me violentar, meu Deus! [aflita]. Eu
falei pra ele que eu iria gritar se ele tentasse, que eu ia fugir mesmo. Aí ele
falou que ia pra rua procurar uma outra, meu Deus, nunca me senti tão
humilhada. Eu queria morrer. [...].
MALU
– Que grosseria, que coisa mais... Que falta de delicadeza com você numa hora
que você tá precisando tanto dele. Eu não sei o que te dizer, mamãe. Eu não
sei... Me parece que a tua sexualidade tá bastante condicionada a ideia da
procriação. E que você, agora, não tem mais esse pretexto que te permitia ter
algum prazer com relação... Agora você fica sem saber viver o prazer, pelo
prazer. Só mesmo. E você fica com dificuldade de assumir isso: o prazer. E isso
deve tá fundindo sua cabecinha, não?
ELZA
– Cabecinha o que filha. Isso é físico mesmo...
Ainda
no referido episódio, há uma passagem em que Elza –devido sua crise com a
chegada da menopausa–, afirma a Malu que não quer mais ter uma vida sexual
ativa com o marido, pois vê sua sexualidade como uma obrigação e não como a
consumação do amor e do prazer entre o casal. É louvável a abordagem trazida
nesse episódio, pois tratou da falta de libido como algo biológico e não como
religioso – algo muito frequente em tais tipos de representações.
O episódio Antes dos
40, depois dos 30, escrito por Manoel Carlos, exibido originalmente em
19/05/1980, mostra que Malu não é uma “supermulher”, pelo contrário, afinal,
também, sofre. E é, justamente, num momento de vulnerabilidade, desencadeado
pelo aniversário e a famosa ‘crise dos 30’ que Malu –desquitada há alguns
meses– se vê numa ‘recaída’ pelo ex-marido, Pedro Henrique. Tal constatação
fica evidente no momento que a personagem diz pra si própria: “Você tá
precisando de um marido, Malu. Mas antes dos 40. Depois fica difícil”. Aqui, a
série problematiza o senso comum (ainda existente!) que a mulher quando chega a
maturidade não consegue mais se casar.
Em Filhos, melhor não
tê-los, de autoria de Walther Negrão e Marta Góes, exibido originalmente em
25/08/1980, a série põe em foco a questão das mães que criam sozinhas seus filhos
e, também, critica a burocracia do processo de adoção de crianças e, também, a
dificuldade que essas mães enfrentam para se manter ou retornar ao mercado de
trabalho.
Esse episódio evidencia a ideia que a série almeja passar a
despeito da valorização do trabalho feminino como algo que acarreta uma
realização pessoal na mulher. Quando Eunice (Cidinha Milan), empregada
doméstica, é demitida do apartamento vizinho ao de Malu por ter tido um filho,
a série mostra a dura realidade das mulheres de classe baixa que veem no
trabalho fora de casa não uma alternativa, mas, sim, uma possibilidade de
complementação da renda familiar.
Outro ponto crucial narrado nesse episódio ocorre quando
Eunice é confundida como prostituta pela polícia, inclusive, sofre violência sexual
por tal constatação equivocada. Walther Negrão se inspirou no caso real
“operação limpeza”, criado pelo delegado Richetti, em 1980, que pretendia
“limpar” a prostituição do centro histórico do Rio de Janeiro.
É perceptível, também, o questionamento de Malu –mesmo que
de maneira indireta– ao regime militar. A personagem clamava pela chegada da
abertura política, justamente, para ver a ampliação dos direitos da mulher.
No episódio Infidelidade,
escrito por Armando Costa, exibido originalmente em 09/06/1980, o público se
depara com uma Malu muito à frente do tempo das outras mulheres dessa época,
pois o episódio como seu próprio título sugere, aborda questões circunscritas
no campo da infidelidade e, é quando Malu –pela primeira vez em sua vida– se permite
em sair com um homem casado. No entanto, cabe frisar que o casamento em questão
estava em declínio à beira de uma separação.
Nesse episódio chega a ser crível a vertente feminista da
heroína da narrativa, uma vez que ela põe em discussão as desigualdades que
recaem sobre as mulheres que se permitem a viver uma aventura amorosa e/ou
sexual fora do que é tido como “normal” pela sociedade.
O episódio, ainda, discute acerca do casamento tradicional
imbuído na ideia de instituição indissolúvel e com isso permite a propagação de
uma reflexão no que tange a ideia de independência e, conseguintemente,
autonomia da mulher.
No derradeiro episódio, do box de DVDs, intitulado Legítima defesa da honra e outras loucuras,
de autoria de Armando Costa, exibido originalmente em 22/09/1980, é abordado a
violência e agressão física contra a mulher. O referido episódio foi exibido
originalmente na época de repercussão da morte de Ângela Diniz, assassinada
brutalmente por Doca Street. Vale ressaltar que a expressão “defesa da honra”
foi insanamente utilizada como argumento no momento de inocentar ou atenuar a
pena dos agressores e homicidas.
A série Malu Mulher foi pioneira ao propor em horário nobre da televisão
brasileira assuntos que são de interesses da sociedade, mas que muitas vezes
são deixados de lado seja por pudor, preconceito ou por desconhecimento. Nesse
sentido, a série idealizada por Daniel Filho traz uma imensurável contribuição
social haja vista que possibilita um diálogo esclarecedor com o público acerca
de assuntos relacionados ao direito da mulher.
Portanto, há uma grande necessidade
de as emissoras de televisão produzir programas –seja eles de entretenimento ou
não– que aborde temas sociais como, nesse caso em específico, os direitos das
mulheres, pois assim propiciará utilidade pública através do entretenimento. E,
conseguintemente, com isso irá trazer informação para a sociedade e estimular a
problematização e o debate de temas relevantes. Além de contribuir para a
ampliação dos direitos das mulheres como também –a sua maneira– minimizar atos
de violência e preconceito contra as mulheres. Ou seja, é uma maneira de
instruir a mulher a não se inferiorar diante da figura masculina. Com isso
conscientizará a mulher a respeito da importância de denunciar maridos e
namorados que sejam agressores.
Afronta ao politicamente correto
Uma
das maiores constatações de que a série Malu
Mulher esteve à frente de seu tempo se dá, também, pelo fato das
personagens Malu e Pedro Henrique aparecerem em cena fumando na frente da filha
Elisa. E isso ocorria numa época em que a Censura Federal, da Ditadura Militar,
ainda estava em pleno vigor. Entretanto, devido ao início do processo de
abertura política havia uma espécie de relaxamento nos órgãos que compunham a
Censura aos programas televisivos. Sendo, por isso, que tais cenas eram
escritas, gravadas e liberadas pelo órgão para serem exibidas na TV.
Mesmo com a Cesura Federal que se
fazia presente nos governos da Ditadura Militar a equipe da série consegue a
façanha de mostrar –num dos episódios que não estão reunidos no box lançado pela Globo Marcas– uma cena
da protagonista Malu tendo um orgasmo feminino na qual era mostrada apenas as
mãos da heroína se abrindo num espasmo durante sua relação sexual com um novo
namorado.
Como a protagonista da série Malu Mulher era uma mulher desquitada, cabe uma explanação melhor
sobre o desquite. A lei do desquite (judicial e amigável) foi inserida no
Código Civil Brasileiro, em 1916. Todavia, a lei não era abrangente, dado que
limitava a liberdade dos desquitados e que ocasionava apenas os direitos dos
cônjuges à bens materiais tornando excludente o desvinculo matrimonial. Na obra
Mulheres dos Anos Dourados, Carla
Pinsky tece a seguinte menção explicativa sobre o desquite no Brasil:
Até
1977, portanto, o casamento civil no Brasil é monogâmico e indissolúvel. O
desquite, a forma legal de separação dos casais, não dissolve os laços
conjugais, mesmo com a separação não pode haver um casamento posterior. O
matrimônio só é dissolvido se for anulado ou se algum dos cônjuges vier a
falecer. A sociedade conjugal e a obrigação da vida conjunta terminam com o
desquite, mas o vínculo matrimonial continua existindo entre o casal. Com a
separação da sociedade conjugal, cada membro torna-se independente do outro,
mas há deveres que não se extinguem como: o da fidelidade, o da pensão alimentícia e o da guarda e criação dos
filhos menores. O desquite pode ocorrer por mútuo consentimento (depois de dois
anos de casados) ou por justa causa (se um dos cônjuges for considerado culpado
de algum dos seguintes motivos: adultério, com penas previstas no Código Penal;
tentativa de morte; abandono voluntário do lar durante dois anos seguidos;
sevicia ou injúria grave). (Pinski, 2014, pp. 247-348)
Sendo
assim, a mulher uma vez desquitada levava consigo uma espécie de marca que lhe
acompanharia para toda vida e que, muitas vezes, seria um grande empecilho para
reconstruir sua vida amorosa com outro homem. Afinal, ela já era ‘deflorada’,
além de que não poderia se casar novamente. Portanto, nessa conjuntura,
mulheres desquitadas como Malu tinham que ter muita coragem para viver numa
sociedade preconceituosa.
Malu: o exemplo de mulher
A
personagem central da série, Malu, é repleta de nuances, uma vez que é calcada
na verossimilitude, pois embora seja transgressora, Malu é, também, ingênua, ou
seja, é “gente como a gente” – passível de ingenuidade. Outra característica
forte dessa personagem é que a mesma possui ideais esquerdistas, socialistas,
afinal, Malu sempre estava a favor dos direitos negados a minoria. Ela
representava o arquétipo da mulher moderna aquela ideal para viver no século xxi, pois tinha um discurso embasado na
luta e na independência feminina, além do respeito pelo corpo feminino.
A personagem central da narrativa tinha ainda um discurso
atípico da maioria das mulheres das décadas de 1970 e 1980, pois a mesma
destaca que a fidelidade não deve ser encarada como uma lei obrigatória como
afirma ao longo do episódio Solidão:
feminino, plural, de autoria de Manoel Carlos (e que também não está
incluso dentre os episódios selecionados para compor o box de DVDs lançado pela
Globo Marcas).
Malu é aquela mulher fiel aos seus sentimentos. E muito
destemida, pois enfrenta os preconceitos por ser uma mulher desquitada,
enfrenta o machismo, é plenamente a favor da legalização do aborto e da
criminalização da violência contra as mulheres.
O modelo de feminilidade apresentado na personagem Malu é de
uma mulher que trabalha fora do lar, que é independente e, acima de tudo,
sincera, afinal diz –sem medo– o que pensa na cara de homens violentos.
Malu é, ainda, uma mulher que se sente realizada através da
maternidade e que ensina a filha, Elisa, a ter autonomia por sua vida, pois “é
importante ter um salário e uma profissão”. Entretanto, também, passa para
Elisa os ensinamentos que sua mãe lhe passou: cuidar da casa, saber cozinhar,
lavar roupas e louça, ou seja, ensina a filha a ter autonomia em seu espaço
doméstico. Porém, o que é mais louvável em Malu é, justamente, essa busca
incessante que ela tem pela devida ampliação dos direitos das mulheres.
A personagem é uma mulher que luta incansavelmente para que
haja uma igualdade de gênero e assim ser respeitada da mesma forma que um homem
é respeitado numa sociedade patriarcal.
Considerações finais
A
escolha da série brasileira Malu Mulher
como objeto para essa pesquisa se deu por se tratar de uma série teleficcionada
que tinha como foco as problemáticas concernentes ao universo da mulher
mostrando as transgressões que as mesmas tiveram no final da década de 1970 e
início da década de 1980.
Outro motivo que despertou a curiosidade em estudar esse
seriado brasileiro transcorreu pelo fato de ter sido um produto audiovisual
inovador e, conseguintemente, ousado que, a meu ver, conseguiu captar muito bem
os anseios democráticos daquele contexto. Aliás, é por esses e outros fatores
que a série Malu Mulher é considerada
pelo público e pela crítica especializada como um retumbante sucesso da
televisão brasileira, tendo sido exportada para diversos países como ainda
sendo uma das obras da televisão brasileira mais premiada tanto no Brasil
quanto no exterior.
E, por último, por se tratar de uma obra audiovisual que
trouxe temas que necessitam estar de maneira constante na pauta da sociedade
brasileira para gerar reflexões nos telespectadores que assistem. E a série Malu Mulher conseguiu –e com êxito–
falar de temas que podem ser vistos como privados ou então de esfera familiar.
Entretanto, a série conseguiu abordar (e por que não publicizar?) tais
conteúdos de maneira altruísta e sem tratar como dramas pessoais, como vemos em
outras obras audiovisuais como, por exemplo, nas telenovelas.
A partir desse estudo foi possível perceber que a personagem
da atriz Regina Duarte é uma mulher obstinada, que não se curva diante dos
homens, nem mesmo daqueles machões que usam sua força física para minimizar
–inutilmente– a figura da mulher. Malu é, ainda, a representação de uma mulher
sagaz, capaz de dizer aquilo que esta “entalado” na garganta da maioria das
mulheres. Contudo, Malu não é uma “mulher maravilha”, afinal é passível de erro
como todo e qualquer ser humano sendo também chorona, sonhadora, romântica, que
se engana, que sente medo e que tem momentos de fraqueza, ou seja, é detentora
dos mesmos conflitos e contradições humanas dos/das telespectadoras.
Outra constatação preponderante
através da série brasileira Malu Mulher
é que não é o homem –ou todo arquetípico masculino e proveniente do machismo de
alguns personagens masculinos– que são os grandes vilões representados na
narrativa, mas, sim as atitudes comportamentais que parte dos homens prefere
adotar deixando se possuir pelo machismo, preconceitos, hipocrisia, opressão e
violência, como se tais atitudes fossem necessárias para legitimar sua
respectiva masculinidade e assim forjar uma submissão feminina.
A série Malu Mulher foi eficaz na popularização de temas feministas que não
conseguiam amplos espaços para serem debatidos pela sociedade e por ser uma
obra veiculada num meio de comunicação democrático, como é o caso da televisão,
a mensagem passada através da personagem, Malu, chegou à diversas mulheres
brasileiras –da mulher não alfabetizada até a mulher mais culta– e, também,
para o público masculino perpassando junto aos homens que cometem agressões,
violência e desrespeito com suas mulheres.
Sendo assim, creio que a série
brasileira Malu Mulher, trouxe muita
contribuição para a sociedade brasileira, pois trouxe uma representação da
mulher moderna que se desprendia da submissão que lhe fora imposta até então. E
também por instruir a mulher a desprender do medo e da passividade em relação
ao seu comportamento diante da figura masculina.
A série Malu Mulher foi responsável por tocar ‘o dedo na ferida’ em pleno
horário nobre da TV brasileira trazendo toda a polemicidade que os importantes
temas presentes na pauta feminista que, inclusive, ainda são temas concordantes
da esquerda-política brasileira.
Malu mostrou a todas e a todos que a
mulher não é um ser frágil como muitos machistas deduzem, muito pelo contrário,
as mulheres vêm provando ao longo do tempo (e da história) que são muito mais
fortes do que se imagina.
Através do seriado em questão
podemos vislumbrar o redesenhamento que a feminilidade vem traçando desde as
primeiras décadas do século passado quando o feminismo esteve intrinsecamente
relacionado ao esforço pessoal de mulheres renomadas que desbravaram seus
próprios pudores para romper com dogmas e conceitos estabelecidos.
Graças as lideranças femininas –sendo muitas delas mulheres
que ainda estão submersas ao anonimato– que as mulheres de hoje, dessas
primeiras décadas do século xxi,
podem usufruir e “respirar” ares de liberdade ainda que seja uma liberdade
camuflada, limitada, repudiada e sexista. Todavia, ao olharmos de maneira
reminiscente constatamos que muito já foi feito, em contrapartida, ao olharmos
de maneira visionária concluímos que ainda há muito a ser feito em prol do
empoderamento, da emancipação feminina, da liberdade e igualdade de gêneros.
E, sendo assim, fica evidente a importância que existe na
representação feminina libertadora, seja ela na televisão, na publicidade, no
cinema, na literatura, na música ou em que âmbito seja. Afinal, lugar de mulher
é onde ela quiser estar e não onde o homem deseja que ela esteja.
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